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ORÁCULO

Um jabuti na árvore colocado pelo Ministério da Economia.


O TETO DUPLEX


JOBIS PODOSAN

 


           DA APLICAÇÃO DO DIREITO

          O Direito é uma ciência de aplicação. Devido ao seu caráter geral e abstrato, as normas jurídicas não têm sentido sem a ocorrência dos fatos que ensejaram a sua edição. Leis são feitas para resolver problemas da vida de modo pacífico. Tomemos como exemplo o art. 927 do Código Civil que diz: aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Observe-se que lei a descreve uma hipótese que é indiferente à maior parte das pessoas. Porém, quando alguém dá um prejuízo, por exemplo, bate no carro de outrem, o fato se encaixa na hipótese e a lei resolve o caso: obriga a indenizar. Veja-se outro exemplo no art. 235 do Código Penal: contrair alguém, sendo casado, novo casamento. É o crime de bigamia. Vê-se aí, claramente, a generalidade e abstração da lei. A quantas pessoas essa lei atinge? Poucas, certamente. Mas o tipo penal está lá, à espera do fato previsto na hipótese. Se não ocorrer o fato, não se pode aplicar o direito. Resumindo, em qualquer ramo do direito, a lei prevê condutas hipotéticas que se materializam quando a conduta sai da descrição legal para o mundo dos fatos ou dos fenômenos. Encaixados o fato e a hipótese, é inafastável a aplicação da lei, por opção do intérprete.

 

            A PORTARIA

Nos últimos dias, noticiou-se que o governo editou a portaria nº 4.975, do Ministério da Economia, que criou o teto duplex do funcionalismo, possibilitando que alguns servidores ganhem até o teto em dobro, “violando” a Constituição, e "especialistas" foram chamados a se pronunciar sobre a situação e emitiram opiniões contrárias à criação das “novas regras fixadas pela portaria”. Para os que falaram como especialistas, dizer uma asneira dessas melhor seria se calassem.

Primeiramente, esclareça-se que uma mera portaria não poderia jamais criar regra jurídica alguma, principalmente nesse nível, que é matéria constitucional. Aliás, portaria não é ato legislativo, é ato administrativo, sem qualquer possibilidade de inovar na ordem jurídica. Na verdade, o tema assunto da tal portaria é a acumulação remunerada de cargos, assunto totalmente resolvido dentro da Constituição, sem margem para dúvidas.

A tal portaria do Ministério da Economia que autoriza o pagamento é só um jabuti colocado na árvore para aparentar que vão receber para adiante. Ora, quem conhece algo de Direito Administrativo ou Constitucional sabe que portaria não atribui e nem cria direito novo, mormente sobre matéria constitucional. Trata-se de mero artifício para passar a receber o agora e depois requerer o para trás sem alarde. Artifício à brasileira, brasileiríssimo, para disfarçar a descoberta tardia do direito que antes já havia, mas que uma meia vergonha impede de confessar.

 

NORMAS DE EFICÁCIA PLENA

As normas que regem a matéria descrita, sobre as quais nos debruçaremos abaixo, são, dentro da famosa classificação de José Afonso da Silva, normas de eficácia plena, ela rege os fatos sob seu comando sem necessidade de intermediação do legislador, salvo os cargos de confiança, que a lei precisa dizer os limites de remuneração, mas às demais hipóteses se aplicam direta e imediatamente. A portaria acima citada é um placebo jurídico. Não tem efeito algum, salvo um tipo de enganação, como já referi, para se encenar que os pagamentos ocorrerão dela em diante. Na verdade, a remuneração total é devida desde a investidura nos cargos, até mesmo de quem já foi exonerado das funções, desde que não atingidos pela prescrição quinquenal que atinge os direitos contra a Fazenda Pública. Exemplifico com os generais da reserva que, no governo atual, foram nomeados Ministros de Estado, que depois exonerados e sofreram o desconto do chamado abate-teto. Todos eles têm direito de requerer o que foi indevidamente descontado, pois, no caso em exame, o teto limite incide sobre cada uma das remunerações: sobre os proventos da aposentadoria e sobre a remuneração do cargo que exerceram, de per si. Trata-se de justiça retributiva: recebe a aposentadoria porque já trabalhou e recebe pelo novo cargo, porque está trabalhando, como se fossem duas pessoas.

Quem está ocupando os cargos de acumulação permitida (art. 37, XVI) e os que, aposentados, que voltaram ao serviço público e ocupam os cargos de exceção previstos no art. 37, parágrafo 10, da Constituição Federal, têm direito à remuneração total prevista para cada cargo (dois cargos ativos no primeiro caso e o inativo e o em atividade no segundo) e o teto se aplica para cada deles isoladamente. Isto é o Direito que está estabelecido diretamente na Constituição, sendo totalmente inócuas quaisquer considerações extra ou metajurídicas, tais como a Pandemia, o momento atual, as dificuldades vividas pelo povo em geral. Estes são argumentos que podem levar à modificação do Direito (de lege ferenda), modificando a lei, mas não para deixar de aplicar a norma jurídica vigente (de lege lata). Ao intérprete encarregado de aplicar a lei é vedado descumpri-la. Ocorrendo o descumprimento cabe ao prejudicado requerer o que foi descontado indevidamente, com as correções devidas e ainda postular indenização por danos morais, podendo a administração pública cobrar do ordenador da despesa que responda por tais dispêndios ressarcindo o erário, na forma do art. 37, § 6º da Constituição: as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

ESMIUCEMOS.

Em caso de acumulação permitida de cargos públicos, o teto constitucional incide sobre a soma das remunerações ou sobre cada uma das remunerações separadamente?

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento dos Recursos Extraordinários n. 602043 e n. 612975, nos quais foi reconhecida a repercussão geral sobre a matéria, consolidou tese no sentido de que “Nos casos autorizados constitucionalmente de acumulação de cargos, empregos e funções, a incidência do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal pressupõe consideração de cada um dos vínculos formalizados, afastada a observância do teto remuneratório quanto ao somatório dos ganhos do agente público”. A tese firmada pela Corte Suprema, a respeito da consideração de cada um dos vínculos empregatícios para o cálculo do teto remuneratório, se aplica indistintamente tanto às hipóteses de acumulação de cargos previstas no inciso XVI, quanto àquelas dispostas no § 10 do artigo 37 da Constituição Federal.

E quais são as hipóteses dos dispositivos citados?

 

ACUMULAÇÃO DE CARGOS EM ATIVIDADE

No caso do art. 37, XVI, trata-se de acumulação de cargos em atividade (o servidor ocupa dois cargos e trabalha por duas pessoas), nos quais o teto incide sobre cada uma das remunerações.

Diz o citado dispositivo constitucional que é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998). Grifei:

a)     a de dois cargos de professor;

b)     a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;

c)     a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.

Aqui, portando, uma primeira conclusão: ocorrendo o exercício simultâneo de dois dos cargos acima referidos, o limite de remuneração (o teto) incide na remuneração de cada cargo e não sobre a soma das duas remunerações.

 

ACUMULAÇÃO DE PROVENTOS COM VENCIMENTOS

A outra hipótese, prevista na Constituição, que permite a percepção integral da remuneração de cada cargo, pressupõe que o servidor já esteja aposentado e, portanto, ganhe proventos pelo que já trabalhou, e que volte ao serviço ativo para ocupar os cargos que enumera, por estar de novo trabalhando.

   O art. 37, § 10, diz que é vedada a percepção simultânea de proventos de aposentadoria decorrentes do art. 40 ou dos arts. 42 e 142 com a remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os cargos acumuláveis na forma desta Constituição, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.

Após dizer a regra: é vedada a percepção simultânea de proventos de aposentadoria decorrentes do art. 40 ou dos arts. 42 e 142 com a remuneração de cargo, emprego ou função pública. A Constituição diz as exceções e as explicita, ressalvando-as:

a)     os cargos acumuláveis na forma desta Constituição (art. 37, XVI, acima citado);

b)     os cargos eletivos;

c)      e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.

 

Uma segunda conclusão: nos cargos acumuláveis referidos na alínea a, o limite de remuneração se aplica a cada cargo. No caso de cargos eletivos (vereador, prefeito e vice, deputado, senador, governador e vice e presidente da república e vice) ou em comissão (ministros, secretários Estaduais ou Municipais e quaisquer outros mencionados em lei como de livre nomeação e exoneração), o eleito ou nomeado, se já for aposentado, recebe as duas remunerações e o limite de teto incide sobre cada uma delas em particular, podendo ocorrer, então, o teto duplex, expressão que, embora jocosa, reflete, com exatidão, a verdade jurídica. Nas duas últimas hipóteses, para que a acumulação seja permitida é preciso que o servidor esteja aposentado. Se estiver na ativa, não pode acumular e o regime jurídico é outro.

 

CONCLUSÃO

Concluído, afirmo que os aposentados que estão, estiveram ou estarão, no exercício de cargos eletivos ou em comissão, na União, nos Estados e nos Municípios, e suas autarquias e fundações, fazem jus à remuneração inteira de cada um, incidindo o limite de teto em cada uma delas, devendo o ente público, de ofício, lançar assim a remuneração mensal dos servidores. Se não o fizer, pode o servidor requerer administrativamente o seu direito. Se lhe for negado, pode requerer judicialmente, desde a investidura, ressalvada, em qualquer caso, a prescrição quinquenal de cada parcela.

 


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