- 18 de junho de 2025
O TOQUE DA IMPERFEIÇÃO
JOBIS PODOSAN
Fruto das múltiplas atividades que exerci na vida, hoje falarei sobre uma questão que observei nas diversas mesas de trabalho que atendi, com pessoas em aflição ou em busca de esclarecimentos sobre a forma de compreender a própria existência, em função dos conflitos inerentes a nossa imperfeição, sendo a maior delas é achar que, em cada conflito, um tem sempre razão. Ter previamente razão é a causa da maior parte da quebra dos relacionamentos, pois quem acha que tem razão fica surdo e cego quanto aos seus próprios defeitos e, vendo-se perfeitos, abominam a imperfeição outro e ficam infelizes, apesar da razão que acham que têm, por isto mesmo muitas pessoas hoje dizem uma frase que entrou no jargão popular: entre ter razão e ser feliz eu escolho ser feliz.
Imaginando que cada pessoa é um círculo podemos fazer a seguinte inferência: 1) enquanto não nos conhecemos somos círculos totalmente separados, cada um com independência total em relação ao outro; 2) iniciado o namoro cada um de nós cede um pouco da nossa liberdade ao outro, fazendo uma área de intersecção bem pequena; 3) à medida que o relacionamento se torna mais complexo e profundo ambos cedem mais e mais parcelas de liberdade; 4) com o casamento e a duração do relacionamento, à medida que as fases se aprofundam, os círculos quase que se superpõem, principalmente nas fases da amizade e a fraternidade; 5) porém, embora a área de intersecção já abranja quase a totalidade do círculo, cada pessoa envolvida no relacionamento ainda mantém uma parcela de liberdade, que é irrenunciável; 6) o segredo da felicidade é manter a área de intersecção cada vez maior e ir eliminando os conflitos na medida que eles surgem, usando a tolerância com arma principal e não permitindo que terceiros proponham soluções mágicas como se fosse possível encontrar receitas uniformes para problemas de relacionamento. Cada um gere o seu relacionamento visando ao bem maior. E este bem, cada um sabe qual é.
Aqui um exemplo: certo casal, composto por Francisco, dito Chicão, em face do seu tamanho gigantesco, e Nalva, dita Nalvinha, vivia uma vida regular. Ele trabalhava na Petrobrás, ganhando um bom salário e ela dona de casa e dedicada aos afazeres domésticos, tomando conta dos sete filhos do casal, como era o padrão de vida da época. Viviam numa rua de pessoas pobres e a família era tida como abastada, pois tinham até carro. Ele trabalhava a semana toda. No sábado ele jogava futebol num campo das proximidades, sendo esta sua única diversão fora da família. Aos domingos iam à praia pela manhã e somente voltavam no fim da tarde. A inveja das comadres locais fez com que elas se aproximassem de Nalva e passaram, à mingua de outros defeitos, a criticar o futebol dos sábados, insinuando coisas que aconteceriam no campo e a bebedeira após o jogo, patrocinada por Chicão, que era o único que podia bancar a festa do jogo. Ao chegar em casa já bebido, Chicão passou s encontrar a mulher de mau humor e brigando pelas suas extravagâncias. O comadrio regurgitava ouvindo os gritos do casal, apesar de um vizinho de bom conselho ter advertido à própria esposa para não se meter naquelas arengas porque iam terminar separando o casal e a pobre Nalva cair na miséria. Proféticas as palavras. A cada sábado a coisa aumentava, até que um dia Chicão quebrou as coisas dentro de casa e foi para a rua. As comadres cercaram a infeliz Nalva e a aconselharam e ir à delegacia dar uma queixa. Ela foi e Chicão foi preso e levado debaixo de vara para o xadrez da delegacia. Na segunda-feira Chicão foi solto, porque o delegado entendeu que ele não tinha cometido crime algum. Ele quebrou as coisas da sua própria casa, não havendo vestígio de violência contra a esposa ou aos filhos. Chicão foi para casa, arrumou suas malas e desapareceu sem deixar vestígios, para nunca mais ser encontrado. Ninguém jamais soube dele nem em casa e nem no emprego, que ele abandonou. Notícias dele quem dava eram as tais comadres que lembravam como ele era responsável e trabalhador, dando de um tudo à família, não merecendo a mulher que tinha. Nalva ficou na miséria porque deixou a maledicência entrar no seu relacionamento e, no fim, levou a culpa das invejosas que obtiveram o que queriam: a ricaça foi para o brejo.
Uma relação de afeto entre duas pessoas passa, ao longo da vida, por pelo menos quatro fases, podendo haver ruptura em qualquer delas e as pessoas se separarem. São elas: a paixão, o amor, a amizade e a fraternidade.
A paixão é o cio humano. Nesta fase prevalece a cegueira dos apaixonados e é bom que seja assim. Cada um vê no outro o que quer, o que idealizou. Abstraem-se os defeitos e multiplicam-se as qualidades. Na verdade tornam-se uma só pessoa e um quer devorar o outra. Nenhum dos dois dá nada ao outro, cada um quer o outro para si, em sua totalidade. É a fase da esganação na qual o um quer engolir o outro e o outro quer engolir o um. É uma fase necessariamente curta a fim que os dois não se matem de tanta danação. É uma fase linda, apropriada para a adaptação da fase seguinte, da qual é preparatória, se frutífera a primeira.
A fase seguinte é a do amor, fase longa, na qual a tempestade da paixão é substituída pela brisa calma do cotidiano. A adaptação à fase do amor exige sacrifício, pois com a redução das chamas da paixão, as pessoas voltam a ser seres normais, como suas qualidades e defeitos e isto impacta no relacionamento que ambos pensaram ser para sempre. Torna-se necessário compreensão e tolerância de ambos os lados. Se na fase anterior cada um queria a própria felicidade, nesta a figura do outro ganha relevo. Cada um se doa querendo, principalmente, a felicidade do outro. Nesta fase revelam-se as imperfeições e, em face destas, cada um deve munir-se da necessária compreensão para tolerar os defeitos do outro, sabendo que outro está também se adaptando aos seus. O amor é a resultante desta fase de grande dificuldade, podendo superá-las e fazer prevalecer as renúncias e perdões, ou romper a relação porque os defeitos superaram em muito as qualidade, seja em número, seja em intensidade. Rompido o relacionamento, sobrevém as dificuldades de superação, que podem chegar às raias da violência e morte, se um não se conforma com o rompimento, passando a se perseguir o outro exacerbando a estupidez humana. Mas este artigo não é sobre a nossa estupidez, é sobre o evoluir do amor.
A fase do amor é morna e benfazeja, mansa e colaborativa, o casal anda de mãos dadas, em paralelas, seguindo as bifurcações da vida em conjunto. É fase mais ou menos longa, ultrapassando os 25, 30 ou mais anos. A fase seguinte é a da amizade, na qual os esposos se conhecem de tal forma que as palavras vão perdendo o significado e a comunicação se estabelece sem necessidade delas, as ações e reações se tornam não apenas previsíveis, mas perfeitamente conhecidas, o carinho vai substituindo o sexo, que passa a ser uma doce lembrança, contam-se e recontam-se as mesmas histórias, que o outro ouve com generosidade e sem interrupções, como as ouvisse pela primeira vez, os gostos se tornam comuns, as coisas da casa tem lugar definido segundo o princípio de um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar, as explicações vão rareando, pois cada um conhece o outro e sabe onde está, o amor vai se desmaterializado e as preocupações com o corpo tem mais relação com a saúde que antigas volúpias.
A amizade vai se estreitando e se chega à quarta fase, que é a fraternidade. Um vai se transformando lentamente no outro, até a fisionomia, antes diferentes, passam a ser parecidas, gestos semelhantes, palavras idênticas, citações frequentes do outro em conversas com terceiros, os amigos não reconhecem um sem ver o outro que, mesmo ausente, parece presente, pois um é quase o outro.
Do quanto li, vi e ouvi concluo afirmando que a felicidade é prosseguir no relacionamento, vencendo as dificuldades e exercitando o perdão, sendo a ruptura o recurso extremo, até porque a consequência da ruptura é a necessidade de outro recomeço, com todos os problemas que as emoções já vividas provocam.