- 18 de junho de 2025
A INTERVENÇÃO V
JOBIS PODOSAN
Quando a constituição estava sendo elaborada, havia infinitas possibilidades diante da Assembleia Nacional Constituinte-ANC. Ninguém sabia que constituição sairia ao final. Os trabalhos foram acontecendo e a constituição foi tomando corpo e se definindo. No dia 5.10.1988, enfim, a constituição foi promulgada e entrou em vigor. Ê claro que todas as constituições possíveis deixaram de existir e passamos a ter a constituição realizada, concretizada. A constituição aprovada é a decisão política fundamental, resultante de uma escolha feita depois da análise das várias possibilidades. Feita a escolha da norma fundamental os atos seguintes são de implantação dessa norma e não de rediscussão a cada momento como se a construção fosse inacabável.
Até 1787, ano de promulgação da constituição americana, a primeira constituição escrita do mundo, as constituições anteriores eram costumeiras, não escritas, resultantes da decantação histórica e praticamente imutáveis, pois costumes não se formavam da noite para o dia.
A opção pela constituição escrita, derivada da razão, facilitou a sua elaboração, porém dificultou sobremaneira a sua legitimação e execução.
Agora mesmo estamos examinando se é possível às FFAA intervir nos poderes da república com base em uma frase do art. 142 da nossa constituição, que alguns querem ver como o estabelecimento de um poder moderador que pairaria sobre os demais poderes e autorizaria que a força prevalecesse sobre a razão.
Diante do texto expresso da constituição, que considera crime de responsabilidade o atentado do PR contra o livre funcionamento dos outros poderes, raciocinemos em termos jurídicos: pode ao mesmo tempo uma ação ser criminosa e lícita? O crime definido na constituição pode se tornar uma conduta lícita?
Como pode ser admitida uma competência se o seu conteúdo é criminoso?
No artigo 85 da constituição está definido como crime de responsabilidade do PR, que pode leva-lo ao impeachment:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação.
As FFAA só podem atuar com autorização do PR e, portanto, somente ele pode ordenar o atentado contra os outros poderes. Ora, se atentar contra os poderes é crime de responsabilidade, como se pode conciliar essa contradição? O atentado não pode ser ao mesmo tampo lícito e ilícito. Análise puramente jurídica refuta tal raciocínio, por levar ao absurdo, mas, segundo certos seguidores do PR ele pode tentar um golpe de força e violentar a constituição.
Decerto que se o Presidente tentar uma quartelada prestará um grande serviço à estabilidade da constituição, embora custe o preço do seu mandato e talvez da sua liberdade e a ruína da sua família. Além de fracassar, perderá o mandato e passará a ter uma vida de zumbi, pois terá abalado o prestígio das FFAA e sua vida política jamais se restabelecerá, perderá seus dois ganchos.
Mas pode ser que durante algum tempo seja vitorioso. Aí será pior, pois a primeira onda que enfrentará será a desobediência civil e será forçado a matar seus compatriotas para se manter no poder.
A “desobediência civil, é uma forma de protesto político, feito pacificamente, que se opõe a alguma ordem que possui um comportamento de injustiça ou contra um governo visto como opressor pelos desobedientes”.
É forma pacifica de protesto que arruína os alicerces da sociedade sob tirania e que teve como precursores Henry David Thoreau, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Leon Tolstoi, John Rawls etc.
Mas o pioneiro foi Etienne de La Boétie (1530-1563), que em seu livro Discurso da Servidão Voluntária, diz que não é preciso se rebelar contra o tirano, bastaria apenas parar de obedecê-lo.
Segundo esses pensadores, defensores da reação não violenta, o autoritarismo pode ser combatido pela não reação. Na verdade, nenhuma tirania presta, pois suprime a liberdade, que é o principal atributo humano. Dos humanos, tirando-se a liberdade, pouco importa a beleza dos lírios.
Mas essa não é a tradição brasileira, que prefere a sedição, a reação violenta, que começa nos bastidores. Foi assim em todos os momentos de força da nossa história. Quando a reação acontece os detentores do poder tentam satanizar os sediciosos e revoltosos que não se enquadraram no contexto da dominação. São chamados de tudo. Porém, como o tempo, porque as ditaduras sempre passam, aos poucos os verdadeiros heróis vão sendo revelados e a máscara do abuso cai. A força, a pouco e pouco, vai cedendo espaço ao direito, que é a única forma de se construir uma sociedade mais justa. Mas não se trata da lei surgida da força bruta e de fontes não autorizadas pela constituição que, a rigor, sequer leis são, mas da lei surgida da vontade popular, derivada de uma constituição regularmente votada, é a lei do contrato social de Rousseau.
A lei complementar, nº 97, regula o emprego das FFAA e no seu art. 15, §§ 1º e 2º, estabelece:
§ 1o Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.
§ 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.
A redação é clara. A lei define em que consiste a atuação das FFAA nos casos das GLO. A rigor, mais não precisaria dizer e já vimos várias vezes as FFAA serem utilizadas para garantia da lei e da ordem, sendo a última delas no Estado do Rio de Janeiro.
Continuemos a responder às indagações.
1. Como pode o PR ter uma conduta que é ao mesmo tempo legal, segundo seu parecer, e criminosa, na forma do art. 85 da Constituição?
RESP – como vimos acima, se o PR atentar contra o livre funcionamento dos outros poderes ele comete crime de responsabilidade e se sujeita a perder o mandato e, a depender das circunstâncias, poderá também cometer crime comum. Se o PR está tentando ou sendo tentado a investir contra os demais poderes, com o fim de se tornar um ditador, não é na constituição que vai obter autorização, terá que usar a força militar contra o direito, sequer será para botar os militares no poder, porque eles já estão lá, usando seus saberes específicos em áreas não incluídas nestes saberes, com o martelo na mão, mas sem saberem onde martelar.
2. As FFAA são inertes sem a ordem do PR. Como podem ser ao mesmo tempo subordinadas e subordinantes, invertendo a hierarquia, um valor dos mais altos entre os militares?
RESP – pudessem as FFAA agir sobre os poderes teriam que, necessariamente, também poderem intervir do poder executivo. As FFAA por definição constitucional e legal estão sob o comando supremo do PR e não podem agir sem a ordem deste. Por aí já se vê que essa intervenção das FFAA nos poderes é uma construção artificiosa. Os outros poderes não podem diretamente mobilizar as FFAA para que estas atuem contra o PR. Havendo pedido nesse sentido, esse pedido será enviado à apreciação do PR para que este as autorize a intervir no poder chefiado por ele mesmo, que é o comandante em chefe das FFAA. Há algum sentido nisto ou esta interpretação é absurda?
3. Como nenhum ato pode escapar do controle de legalidade do Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV), como pode o controlador, as FFAA, ser submetidas ao controle do controlado, o STF?
RESP – por força do disposto na constituição nenhuma lesão ou ameaça pode escapar da apreciação do poder judiciário, seja quem for o autor da lesão ou da ameaça, portanto, o órgão controlador da legalidade dos atos no Brasil é o poder judiciário, que não pode substituído por ninguém neste mister. Em vários momentos da nossa história a apreciação de atos do PR foram excluídos da apreciação do poder judiciário. Getúlio Vargas adorava este procedimento. O último desses atos foi o AI-5, que dispunha no seu art. 11:
Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.
Podendo fechar o Congresso Nacional e legislar sobre qualquer matéria, inclusive sobre emendas constitucionais (AI-5, art. 2º) e sendo seus atos excluídos na apreciação do poder judiciário, temos que o PR unificou os poderes e transformou-se em ditador. O PR podia tudo e cada um fez o que quis. Os cidadãos perderam a cidadania, pois quem não tem a quem reclamar ou recorrer nada têm, está sujeito aos arbítrio de outrem.
4. Como restabelecer a vigência da Constituição violada sem anular os atos praticados?
RESP – quando a constituição cai em desonra não mais se recupera. Aliás, qualquer honra é assim, não há uma segunda desonra, uma basta e sobra. Já viram a cara de políticos condenados? Andam de cabeça baixa, a voz sumida, se estão no exercício de mandato não vão mais à tribuna, fogem da imprensa como o diabo da cruz, perdem a arrogância dos poderosos, transmudam-se em religiosos, refugiam-se dos braços de Deus, passam a rezar, evocam sua crença na justiça. Passam a amar mais as suas mulheres e seus filhos, nos quais não pensaram quando estavam na busca do mel, o gosto amargo do fel lhes apaga a luz do semblante. Assim é a constituição. Derrubada por uma conspiração vitoriosa, precisa de outra para reger o país, pois revelou-se frágil para conter o despotismo. Golpes e ditaduras duram pouco tempo. Todas se esgotam e se afogam no sangue que derramam. Produzem algumas construções materiais, mas matam o espírito da nação. Querem sempre o acerto a qualquer custo, esquecendo que uma nação é feita também dos seus erros. Uma nação sob o tacão da ditadura não é mais que um corpo morto, que nada transmite por lhe faltar o oxigênio que vivifica. Tomara que não tenhamos mais os senhores da razão, que conduzem ao caos!
5. Poderia listar algumas hipóteses que, a seu ver, os outros dois poderes poderiam hostilizar um ao outro ou ao Poder Executivo que só possam ser resolvidos pelas FFAA?
RESP – na verdade não há hipótese alguma. Todo e qualquer conflito encontra solução no mecanismo de freios e contrapesos previstos na constituição. É o espírito público dos chefes dos poderes que facilita as soluções. Quando Jimmy Carter governava os EUA, ele conseguiu celebrar um acordo de desarmamento com a URSS, que seria o melhor tratado já celebrado sobre o tema. Submetido ao congresso americano o acordo foi rejeitado. O que fez Carter? Apenas disse: é uma pena, era um bom acordo. E o tema morreu. Fosse aqui e agora e teríamos o PR reclamando de invasão de sua competência. Não houve invasão alguma, cada um atuou no seu campo de competência. Suponha-se que o PR indique para compor o STF o tal ministro “terrivelmente evangélico” e o Senado rejeite a indicação por um voto. A aprovação do nome indicado pelo PR para compor o STF depende dos votos da maioria absoluta dos senadores, ou seja 41 votos positivos. Suponha-se que apenas 40 votaram a favor e, com esta votação, o nome foi rejeitado. Há conflito entre os poderes? Absolutamente nenhum, somente exercício de competência. O que o PR deverá fazer? Apenas indicar outro nome, desta vez tomando o cuidado de indicar alguém que preencha os requisitos da constituição e não os tirados da sua cabeça. Em qualquer hipótese em que haja conflito, o poder que esteja se sentido prejudicado deve recorrer ao STF, quando este dará a palavra final, goste-se dela ou não.
6. Sendo os atos ao final nulos, para que praticá-los?
RESP – há pessoas que não aceitam ingressar nas instituições, sentem-se mal em qualquer delas, porque as querem modelar ao seu gosto e jeito. As instituições antecedem os indivíduos e estes nelas ingressam não para demoli-las, mas para respeitá-las. Chama-se a isto civilização, que gera a cultura que nos distingue dos outros animais. Suponha-se que um PR, queira demolir o Cristo Redentor, por entender que o país é laico. Ora, é certo que seria loucura alguém pretender construir o Cristo Redentor hoje. Mas ele foi inaugurado em 12 de outubro de 1931 e passou a integrar o patrimônio imaterial do povo brasileiro. Seria algo como o presidente atual do Egito pretender demolir a pirâmide de Quéops, por ser uma obra faraônica e perdulária. Ou querer Barack Obama pintar a Casa Branca de preto e mudar seu nome para Casa Preta, em homenagem a sua raça e por ser o nome original preconceituoso. Os inadaptáveis às regras da lei são muitos e colocam as instituições em perigo. Porém, trata-se de perigo abstrato, pois os atos nulos não produzem efeitos. Claro que poderão ocorrer efeitos imediatos com aparência de validade, mas o tempo sempre corrige tais destemperos. Um povo se forma ao longo do tempo, muito tempo, com seus erros e acertos, cada geração pondo sua contribuição no evoluir da nação. Esses atos nulos são apenas espasmos da iconoclastia que habita certas pessoas e que servem de exemplo sobre o que não fazer. Quanto menos cada um tentar salvar o país melhor, pois a salvação é produto coletivo, meta na linha do horizonte, mesmo que um líder galvanize a opinião pública numa certa direção, como fez Mandela.
7. Enfim, ao exercer esse Poder Moderador, não estarão todos os que decidirem a respeito, reescrevendo a Constituição, pondo nela o que nela não está?
RESP – em várias oportunidades já dissemos que sim. A Assembleia Nacional Constituinte cessou suas atividades em outubro 05 de outubro de 1988. A partir daí a constituição somente pode ser modificada pelo poder constituinte derivado que, mesmo assim, não é livre para fazer a modificação que quiser, pois está limitado pelas cláusulas pétreas. Não é ato de governo ou de líderes, mas ato formal do Congresso Nacional. O que não está na constituição não pode ser criado por construção de um jurista imaginoso, por mais renomado que seja.
CONCLUSÃO – pelas razões expendidas nesta série de cinco artigos, não há qualquer razão jurídica válida para se entender que as FFAA sejam um poder (sequer é um poder, mas órgão subordinado ao Poder Executivo, de 2º escalão.) acima dos três poderes anunciados no art. 2º da constituição e que as intervenções visando à garantia da lei e da ordem-GLO previstas no art. 142, estão perfeitamente definidas no art. 15 e seguintes da lei complementar nº 97 e que já, por variadas vezes foram utilizadas na questão referente à segurança pública, quando as forças estaduais não forem suficiente para debelar o problema. Diz a lei no § 3º do art. 15, que consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.
Conclui-se daí que o legislador regulamentou a aplicação das GLO e a limitou as intervenções à área da segurança pública, não fazendo qualquer referência aos poderes da república, até porque a tanto não poderia ir, por se tratar de matéria constitucional típica.