- 18 de junho de 2025
PENSANDO A INTERVENÇÃO IV
JOBIS PODOSAN
A constituição brasileira criou um dos mais complexos sistemas de controle de constitucionalidade do mundo, colocando sobre os ombros do Supremo Tribunal Federal uma carga de trabalho que, pode-se dizer, abrange a fiscalização de constitucionalidade de todos ramos do direito brasileiro. Cada ramo do direito possui seu objeto próprio, tratando de matérias especificas, como por exemplo, o direito penal, tributário, do trabalho, civil, comercial etc. já o direito constitucional, além de tratar da matéria que lhe é própria, como a organização do Estado, a organização dos poderes, os direitos e garantias individuais, contém normas de todos os outros ramos do direito e de tudo quanto aconteça no país, de amamentação de bebês na prisão à cultura e educação, chegando o Ministro Roberto Barroso, do STF, a dizer que a constituição só não promete trazer a pessoa amada em três dias, todo o resto, se procurando bem, nela de acha.
A competência do STF foi exacerbada, talvez pelo medo do Poder Executivo que, no regime militar, podia tudo, bastando uma lida no AI5, para se perceber que ele poderia ter sido escrito num só artigo: art. único - presidente pode tudo. Sendo o STF um tribunal, sujeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, em decisões públicas, acreditou-se ser mais seguro que a palavra final fosse dada por ele. Com o passar do tempo e da interpretação contínua das normas constitucionais, o STF foi se apoderando das suas competências e chegando, no atual governo, a passar a impressão de estar invadindo o campo de competência dos outros poderes.
O sistema constitucional brasileiro é composto de duas grandes vias: a via difusa ou concreta, que permite que cada juiz ou tribunal, no julgamento de um caso concreto, deixe de aplicar determinada lei por entendê-la contrária à constituição e a via concentrada ou abstrata que, no plano federal, permite ao STF declarar uma lei ou ato normativo federal ou estadual inconstitucional e retirar-lhes a força normativa, na prática revogando a lei. São poderes imensos, pois dá aos juízes a força necessária para deixar de aplicar uma lei vigente, por ofensa à constituição, mesmo tendo a lei passado por todo o processo constitucional de elaboração.
E não é somente isto. Nessa via abstrata – estamos tratando apenas do STF – o constituinte originário e o derivado criaram ações que tornam o STF no protetor quase absoluto da constituição, como:
A) A ação direta de inconstitucionalidade - que visa a invalidar leis aprovadas depois da vigência da nova constituição e que com ela conflite;
B) A ação direta de inconstitucionalidade por omissão – que visa a proteger a constituição contra a omissão do poder público, abrangendo os três poderes. Que dizer que, se a constituição estabelece um direito mas o legislativo não faz a lei regulamentadora, o judiciário tem legitimidade para interferir nessa omissão;
C) A arguição de descumprimento de preceito fundamental - que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público ou quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à constituição.
Há controvérsia sobre o conteúdo dos preceitos fundamentais, mas Nelson Nery Jr. E Rosa Maria Nery asseveram que “são fundamentais, entre outros, os preceitos constitucionais relativos: ao estado democrático de direito (CF 1.º caput); b) à soberania nacional (CF 1.º I); c) à cidadania (CF 1.º II); d) à dignidade da pessoa humana (CF 1. º III); e) aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (CF 1.º IV); f) ao pluralismo político (CF 1.º V); g) aos direitos e garantias fundamentais (CF 5º); h) aos direitos sociais (CF 6.º a 9.º); i) à forma federativa do estado brasileiro; j) à separação e independência dos poderes; l) ao voto universal, secreto, direto
e periódico.”
Toda essa exposição é apenas para demonstrar que, quando provocado, o STF pode invalidar leis vigentes, leis anteriores à constituição, leis que, mesmo regularmente votadas estejam em conflito com preceitos fundamentais da constituição. Em outras palavras, o judiciário protege a constituição contra qualquer ataque que a ela seja feito, tanto por ação quanto por omissão. Quando assim atua, o STF está exercendo apenas a competência que a constituição lhe outorga e não invadindo a competência dos outros poderes.
Outro ponto que quero destacar é o da eficácia da constituição que consiste em conquistar legitimidade e respeito pelo povo, ganhando, com o tempo, o caráter de quase imutabilidade que a torna realmente os pilares da nação que rege, ninguém querendo modificá-la para atender a desejos transeuntes do determinados governantes temporários. Cada presidente que chega ao poder jura cumprir e manter a constituição perante o Congresso Nacional, mas o que prega, desde a campanha, é a sua reforma, e tenta, durante todo mandato, modificar a constituição para torná-la dignas de si mesmo.
Quando os americanos elaboraram a primeira constituição escrita do mundo, em 1787, três dos constituintes escreveram nos principais jornais do país uma série de 85 artigos para conquistar o apoio da população ao novo regime. Inventaram a federação como forma de Estado e buscaram inculcar no povo a ideia de fundamentalidade da constituição. Essa pequena constituição, de apenas sete artigos, vige até hoje com apenas 27 emendas e é considerada sagrada pelos americanos. Se alguém lá pretender não se eleger presidente dos EUA basta prometer mudar de constituição!
Os artigos de John Jay, Alexander Hamilton e James Madison foram reunidos em livro sob o título The Federalist, que tem tradução para o português. Se fossem escritos hoje não teriam o impacto que tiveram na época em que foram elaborados, pois a Constitução se consolidou como Texto Fundamentel.
A nossa constituição balança com brisa leve. Há pouco tempo atrás, o Presidente do Senado Federal falou que deveria ser elaborada uma nova constituição para que o país seguisse em frente!
Talvez o homem não esteja à altura do cargo e essa fala seja apenas o balbucio de uma criança que ainda não aprendeu como anda a civilização e pensa que bom mesmo é o eterno recomeço, com cada geração destruindo o que a antecedente constuiu e violando as regras de acumulação que caracteriza a cultura.
Continuamos a responder às indagações sobre ser possivel às FFAA intervirem nos poderes da república com base no art. 142 da constituição.
1. Unificados os poderes em mãos do PR estaremos num estado democrático de direito? Não estaremos reeditando o Estado Novo (1937/1945)?
RESP – essa unificação já foi feita em várias oportunidades da nossa experiência republicana. De 1930 a 1934 todos os poderes estavam nas mãos de um único homem, que tudo podia. Ele era a constituição viva, pois a carta de 1891 foi revogada pela dita revolução de 30 e nenhuma outra foi posta em seu lugar. Foram quatro anos de governo absoluto, ditatorial. A Revolução Constitucionalista de São Paulo, que foi militarmente derrotada, provocou, no entanto, o efeito de obrigar o Ditador a convocar uma Assembleia Constituinte que, reunida, editou a Constituição de 1934, elegendo o Ditador presidente, sem os votos do povo. Getúlio não gostava de amarras legais e, cabalisticamente, deu um golpe em si mesmo e adotou uma constituição a seu gosto em 10 de novembro de 1937, com a qual inventou o Estado Novo, que de novo nada tinha, apenas oficializava, ilegalmente, uma nova ditadura. De 1937 a 1945, mergulhamos de novo nas trevas do obscurantismo. Nesses períodos não havia leis, pois não havia Congresso para votá-las, o presidente governava por decretos e decretos-leis.
De 1964 a 1979, o Brasil inventou algo inexistente em todo o mundo: os atos institucionais e complementares que, editados pelo Presidente da República eram superiores à constituição. Os poderes existiam formalmente, mas eram simulacros de poderes, uma vez que o presidente poderia fechá-los, cassar mandatos, aposentar e substituir juízes da Suprema Corte. Com a revogação dos atos institucionais, começou o declínio do governo absoluto e o presidente de então começou a exalar o mau cheiro da ilegitimidade, culminando com a sua saída do poder pela porta dos fundos.
Estado é uma forma de organização política, qualquer que seja ela, onde vige um poder que exclui o de qualquer outra nação. Democrático é o Estado no qual o poder emana do povo, que compõe o poder pelo voto e sua ação é para benefício do povo e não de uma pessoa ou classe. Os representantes eleitos atuam em nome do povo e para o povo.
Estado democrático de direito é o estado cuja autoridade emana da lei, sendo esta o instrumento do governo para reger a sociedade. Todas os direitos e deveres são previstos nas leis votadas pelos representantes do povo que, desse modo, obedecem a si mesmos. Portanto, a unificação dos poderes destrói o Estado Democrático de Direito leva à ditadura e morte e confronto e luta pelo restabelecimento da ordem democrática. Se a família que pensa estar no poder (é mera representante) agora pudesse ver o seu destino daqui a 20 anos veria destinos distintos a depender do sucesso ou insucesso da ruptura que insinua irá fazer.
2. O senhor pode apontar um único país do mundo onde as forças militares funcionem como poder moderador, agindo por sobre os poderes?
RESP – na verdade não há poder moderador em nenhuma parte do mundo. Reminiscência sobre esse poder surgiu na obra de um francês chamado Benjamim Constant (1767/1830) e foi adotado pela constituição brasileira de 1824, que não passou por um processo constituinte, mas saiu da algibeira do voluntarioso Pedro I. Modernamente seria absurdo supor que possa haver convivência possível entre a separação de poderes e a existência do um poder moderador, mesmo nas Monarquias. A advertência de Montesquieu continua em pleno vigor: “é uma experiência eterna que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele, por isto é necessário dispor as coisas de tal maneira que o poder detenha o próprio poder.” As constituições modernas contêm um sistema de freios e contrapesos através do qual algumas ações de um poder são temperadas com as intervenções autorizadas dos outros. Observe-se, por exemplo, com a elaboração de uma lei ordinária no nosso sistema. Ela é votada pelo legislativo, mas só se torna lei com a sanção do Presidente da República, podendo este vetar o projeto no todo ou em parte. Mas se o Presidente vetar, o Congresso Nacional pode derrubar o veto. E o Judiciário como fica nesse jogo? Mesmo a lei sancionada e em vigor, pode ter a sua eficácia suspensa pela fiscalização de constitucionalidade feita pelo Poder Judiciário, como visto acima. A lei, portanto, é obra coletiva.
3. Há quem diga que o Poder Executivo se distingue dos demais poderes quando o PR atua como Chefe de Estado, mas os arts. 2º e 84 da Constituição não fazem qualquer distinção a respeito. A função de chefe de estado se distingue da chefia de governo, autorizando o PR a se sobrepor aos demais poderes?
RESP – existe sim a distinção das atividades do presidente da república. Basta ler o art. 84 e se vai verificar que o presidente às vezes atua voltado para dentro do seu país (é chefe de governo), às vezes atua voltado para o concerto das nações (é chefe de estado) e às vezes atua como chefe da administração federal. No sistema parlamentarista há distinção entre Chefe de Estado, que é exercida pelo Rei ou Presidente e a Chefe de Governo, que incumbe a um primeiro ministro. No sistema presidencialista, as três funções se confundem numa só pessoa, que exerce a todas sem que possa, por isto, invadir os outros poderes. O que há, na verdade, são pessoas que tentam reescrever a constituição colocando nela o que nela não está. Há uma constituição que foi adotada como válida e há outras constituições na cabeça de cada um. Leio que agora estão tentando fazer uma mudança na constituição para permitir a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado, adaptando o permanente ao transitório. Amanhã farão o contrário, depois aumentarão os mandatos ou o número de parlamentares, enfim a constituição é uma colcha de retalhos, onde cada um quer acrescentar o seu pedaço. Enquanto a estuprarmos nunca a transformaremos numa senhora de respeito. A constituição somente é boa quando fica velha e intangível. Não se pode fazer uma constituição para cada geração.
4. Sugerem alguns que o PR pode aumentar o número de ministros para 25, por exemplo, e preencher as vagas com aliados seus e assim ter maioria no STF. Isto é viável? Poderia fazer isto sem a participação do Congresso? Onde está previsto na Constituição o poder do PR de emendá-la, por ato seu?
RESP – essa discussão sempre vem à tona quando se quer dominar o STF, minando sua independência. Hoje, para mudar o número de ministros do STF é preciso alterar a constituição através de emenda constitucional que, ao meu ver, tem de ser da iniciativa do próprio tribunal. A organização de cada poder deve partir sempre do próprio poder. A iniciativa de uma emenda de tal importância deve ser da iniciativa do próprio poder judiciário. Por outro lado, há um aspecto interessante nessa questão. Quem pretende aumentar o número de juízes no STF quer fazer isto para dominar o tribunal, obtendo assim, decisões favoráveis as suas pretensões. Não será contrassenso querer tirar a independência dos outros para aumentar a sua? Colocar um ministro no STF é uma função relevante, uma competência saliente do Presidente, que indica e nomeia, e do Senado, que aprova ou rejeita a indicação, e não a contratação de um caseiro ou um lacaio para limpar o quintal ou esfregar as costas de quem o indicou. O notável saber jurídico e a reputação ilibada exigidas pela constituição são antagônicas de pretensão de domínio. Ninguém com tais requisitos, que são derivados do mérito pessoal, se dará ao sacrifício de si mesmo para agradar a alguém. Na verdade, quando um presidente quer manter a dominação sobre um ministro do STF ele indica para o cargo alguém despreparado para o cargo, que lhe agradecerá vida afora a nomeação indevida. Há precedentes disto no STF. Há ministros que, ao invés da toga, vestem a libré dos criados de luxo e nunca chegam a ser magistrados de uma corte suprema. Não servem para nada, senão para envergonhar o tribunal. A honra de nomear um ministro para a corte suprema é nomear o que de melhor há na comunidade jurídica do país. A nomeação de incompetentes revela a incompetência ainda maior de quem nomeia.
5. O instrumento legal para aplicação das salvaguardas (intervenção nos Estados, estado de defesa e estado de sítio) expressas na Constituição é o decreto presidencial, mas não há previsão desse decreto na Constituição para a intervenção nos poderes. Se for baixado esse decreto ele não estará inovando na matéria constitucional?
RESP – um decreto desse teor nada significará juridicamente, será um nada, um mero pedaço de papel, como se eu baixasse uma medida provisória. O decreto deve ter previsão constitucional e se referir a um instituto previsto na constituição, com toda sua configuração, como se vê, por exemplo, do decreto que estabelece o Estado de Defesa. Confira-se a técnica constitucional:
Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
§ 1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I - restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;
II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
§ 2º O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação.
§ 3º Na vigência do estado de defesa:
I - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;
II - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;
III - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;
IV - é vedada a incomunicabilidade do preso.
§ 4º Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.
§ 5º Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias.
§ 6º O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa.
§ 7º Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.
Como se trata de uma medida excepcional, a Constituição estabelece toda a sua configuração para evitar excessos e abusos, estabelecendo, inclusive, o controle do Congresso Nacional. Na constituição não há referência a qualquer procedimento que autorize as FFAA a avançar sobre os outros poderes da República.
Um decreto de tal jaez é rematada tolice, não entra no mundo jurídico e provoca o impeachment do Presidente, além de haver crime comum no caso.
6. Não estará o PR cometendo os crimes previstos no art 85, incisos II e VII da Constituição e, portanto, aceitando ser submetido ao processo de impeachment?
RESP – o artigo 85 da Constituição diz que são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Grifei os incisos II e VII apenas para destacar que somente um presidente louco cometeria um atentado contra o livre funcionamento dos demais poderes ou recusaria obediência às determinações do poder judiciário, sabendo que seu impedimento viria a galope, salvo se acreditar que, usando a força, transformaria a constituição também num mero pedaço de papel, como preconizava Ferdinand Lassalle e o permitiria salvar o país apenas com base nas suas ideias, como tantos outros loucos já tentaram e fracassaram todos.