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ORÁCULO

A Constituição tem dois institutos que permitem legislar quando houver omissão do Congresso.


PENSANDO A INTERVENÇÃO II


 

JOBIS PODOSAN


 

​As indagações feitas no artigo da semana passada tiveram como diretriz a fala do Presidente da República, que afirmou o seguinte: as FFAA "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem." E com base nesse texto, insinuou poder avançar sobre os outros dois poderes quando entender que estes estejam entrando na competência privativa do Presidente da República. Desde já fique esclarecido que as FFAA não são uma guarda pessoal do Presidente, estando as ordens dadas pelo PR condicionadas ao que a Constituição previamente autoriza e não é para utilidade particular daqueles que momentaneamente as chefiam.

As respostas, portanto, seguirão o texto da Constituição, respeitando a letra, o espírito da Lei Maior e a opinião do insigne jurista Ives Gandra Martins, estas tendo muito mais em vista o que o mestre gostaria que estivesse na Constituição, mas que, na verdade, lá não está.

As respostas abaixo, por óbvio, não foram dadas pelo Mestre Ives, porém, como exsurgem do texto da Carta Magna, elas podem  ser dadas e entendidas por qualquer pessoa de mediano conhecimento jurídico. A posição do professor se afasta do direito posto (de lege lata) e se aproxima do direito que ele gostaria que existisse (de lege ferenda), sendo muito mais simpatia que ciência.

Não se pode de uma frase isolada (As FFAA "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.") retirar um instituto constitucional que a Constituição não contempla, numa mínima linha sequer. Tenha-se em vista ainda que, em se tratando de matéria constitucional típica, tal instituto só poderia ter sua configuração na própria Carta. Para que a tese do professor se tornasse viável não seria sequer possível por emenda constitucional, sendo necessária uma mudança de constituição por golpe ou revolução, uma vez que a convocação de uma Nova Constituinte é também inconstitucional, pois para se adotar uma nova constituição é preciso destruir a que está vigendo. Uma verdadeira constituição nasce legitimamente de um Revolução deflagrada pelo povo; ilegitimamente, pode nascer de um golpe de estado, por usurpação do poder de uma força suficiente para tal, que pode ao depois obter consentimento popular ou com o fechamento do ciclo do golpe, esgotadas as suas forças, como no Brasil. Uma constituição legítima nasce para viger para sempre, admitidas mudanças, através de emendas nela própria previstas, para adaptá-la ao caminhar do seu povo. Não é um decreto que se pode mudar todo dia. É uma construção com estruturas e fundações que não podem ser removidas sem abalar todo o país. Uma nova constituição é sempre um recomeço e um marco zero. Um eterno reiniciar como as balbúrdias que estamos vivendo. Uma constituição deve ser velha e amada para controlar a paixão do seu povo, por lhe haver desenvolvido a consciência.

Está na competência do Presidente de República, no art. 84 da Constituição, o poder de ser decretada por ele a Intervenção Federal, o Estado de Defesa e o Estado de Sítio e os arts. 34, 136 e 137, respectivamente, definem as hipóteses de cabimento, o instrumento legal a ser utilizado, a oitiva dos Conselhos da República e de Defesa Nacional, a autorização do Congresso Nacional, o prazo de duração, as condições, o comando, os limites, a prestação de contas ao Congresso Nacional, definindo a responsabilidade pelos excessos. Onde, na Constituição, estão esses poderes e limites para o Presidente da República no caso de intervenção nos poderes da república? Em lugar algum.

As respostas abaixo serão dadas por mim, com base na Constituição vigente e, creio, seriam as dadas pelo prof. Ives Gandra, retirado o escopo da sua opinião pessoal.

 

1.     Pela redação do art. 142, o Presidente exerce o comando supremo das FFAA, então como agirão os outros poderes no caso de o Presidente da República usar a força contra o Congresso Nacional e/ou o STF? Pedirão ao próprio Presidente que ordene às FFAA a agir contra o seu Comandante em Chefe, estabelecendo a luta dentro do próprio Poder Executivo?

RESP -           A Constituição da RFB trata os poderes como iguais, independentes e harmônicos (CF, art. 2º), não havendo na Carta, nada que dê supremacia ao Poder Executivo sobre os demais. Sendo o PR o Comandante Supremo das FFAA (CF art. 142) isto significa que somente ele poderia afrontar os demais poderes com o emprego das FFAA, porque estas obedecem somente a ele e não seria crível e nem possível que as FFAA, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, pudessem se voltar contra o seu comandante, por solicitação dos demais poderes, solicitação, aliás, que teria de ser feita, ao próprio PR! Veja-se como seria interessante: o Presidente mandou fechar o STF porque entendeu que um ato desse poder era invasivo da sua competência. O STF, então teria que solicitar ao próprio PR que mandasse as FFAA atuar contra as próprias FFAA, quando foi, ele mesmo, que ordenou a invasão! Como é sabido em direito toda interpretação que leva ao absurdo deve ser desconsiderada.

 

2.     Quais os atos que os outros dois poderes, que não dispõem de força, nem de canhões, podem praticar para dar ensejo à mobilização das FFAA?

RESP – tecnicamente, não há qualquer ato praticado pelos demais poderes contra o Executivo ou um contra o outro, que precise de armas pare serem resolvidos. Há quem exemplifique com os casos de ativismo judicial, corrente doutrinária que defende que o STF pode, interpretando a Constituição, legislar positivamente, inovando na ordem jurídica, louvando-se nos princípios constitucionais para a partir deles extrair as regras a serem aplicadas à população. Porém a Constituição tem dois institutos que permitem legislar quando houver omissão do Congresso: o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, além da arguição de descumprimento de preceito fundamental, que protege a Constituição contra ataques do legislador ordinário. Tome-se o caso da lei de greve no serviço público. Até hoje o legislativo não fez a lei que a Constituição lhe ordena (art. 37, VII). Demorou tanto que o STF mandou aplicar no serviço público a lei de greve do setor privado. O mundo caiu? Não. O Congresso permanece até hoje omisso. Outro caso que costuma ser invocado é a autorização para casamento de pessoas do mesmo sexo. Diga-se, antes de focar a resposta, que todos os ramos do direito são compostos por princípios e regras. Mais estas do que aqueles. Com o Direito Constitucional ocorre o inverso, há muito mais princípios do que regras. Os princípios criam o que a doutrina chama de Constituição Aberta. As normas constitucionais têm menos concretude e densidade e mais abstração e amplitude, de maneira que a sua compreensão e interpretação exige uma interação maior com o meio no qual a Constituição vige, seu passado, seu presente e seu futuro. Uma mesma norma constitucional pode ter significados diversos conforme se alonga no tempo. No caso da decisão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, pense-se na quantidade enorme de pessoas que estavam sendo prejudicadas pela omissão legislativa. Essas pessoas saíram da clandestinidade e foram abrigadas pelo Direito. Imagine-se que o Legislativo agora se pronuncie e vete e o casamento ou a União estável entre pessoas do mesmo sexo, na contramão de todos os países ocidentais! Estas pessoas não tinham abrigo na lei ordinária, mas estavam amparadas na Constituição. O legislativo não fez a lei concreta, mas o STF aplicou o princípio da dignidade da pessoa e dele extraiu a norma concreta. A questão está em aceitar o pacto criado pelo Poder Constituinte originário: quem dá a última palavra em matéria Constitucional é o STF.  Haverá sempre um órgão que fala por último e este órgão não pode estar sujeito a humores e inclinações de um poder atual e transitório. A insatisfação de quem está num poder temporário não pode ser causa de alterar as estruturas e fundações do país. A Constituição Americana é datada de 1787, a primeira constituição escrita do mundo, e passou quase incólume por todas as tempestades, guerras, ciclones, quebra econômica, assassinato de pelo menos três presidentes (Abraham Lincoln, James A. Garfield e William McKinley). Quando entrou em vigor, com escassos sete artigos, o país era semelhante ao Brasil e um nada no mundo. Hoje o capitaneia. A estabilidade constitucional é sem dúvida uma das causas dessa evolução. Mas a Constituição sofreu mudanças, através de emendas (27), construção (constitucionalização de costumes) e mutações (mudanças adaptativas para suportar as mudanças de fato dentro da sociedade). Nós já tivemos sete constituições e estamos sempre recomeçando, dependendo do humor de uma única pessoa ou classe. Depois essa pessoa se vai e o problema fica, nunca se chegando ao almejado futuro e nós achando que este pais não tem jeito.

 

3.     Se se tratar de conflito jurídico – por exemplo o Congresso devolver medida provisória publicada e em vigor, alegando sua inconstitucionalidade ou quando um ministro do STF, em decisão liminar, negar posse a um ministro de Estado nomeado pelo Presidente da República usando seu poder discricionário - como as FFAA resolverão esses conflitos? Com base em que conhecimento, já a força neste caso e inútil?

RESP – esses conflitos são aparentes, são conflitos criados por mentes belicosas. O Direito tem respostas para hipóteses tais. Veja-se o caso da medida provisórias que o Presidente do Senado agora há pouco devolveu. Não existe essa devolução prevista na Constituição, assim, trata-se de ato inútil.  A MP já estava publicada e portanto produzindo efeitos com força de lei. O PR não precisava fazer nada. O Presidente do Senado poderia jogar a MP no mar, pela janela, no cesto de lixo ou deixá-la dentro da gaveta. Aliás, a tramitação das MPs tem sua votação iniciada na Câmara dos Deputados (art. 62, § 8º), não tendo qualquer sentido o Presidente do Senado pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade dela para devolvê-la ao PR. Trata-se de ato inócuo, imprestável. A MP vigeria pelos 120 dias de tramitação e produziria seus efeitos, perdendo a eficácia, após esse prazo (art. 62, § 3º). A recusa prévia não teria qualquer efeito sobre a MP. O que a fez perder e eficácia foi a edição de nova MP revogando a original, ato que não deveria ter sido praticado, mas foi. No que toca ao poder do PR de nomear os seus ministros discricionariamente, ninguém discute que pode e somente ele pode nomear os seus ministros. Porém, a Constituição limita todas as liberdades públicas e discricionariedade não significa arbitrariedade. Se a nomeação ferir os princípios que estão elencados no art. 37, caput, da Constituição, o LIMPE (Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência) essa nomeação pode ser atacada perante o STF que, repita-se, provocado, poderia examinar esse ato de nomeação e desconstruir a nomeação. O que o STF não poderá jamais fazer é indicar quem deva ser ministro. A escolha do PR permanece incólume, só que não em relação a certa e determinada pessoa. Agora mesmo vimos que o PR pode indicar errado. O Decotelli enganou o PR debaixo da sua barba e poderia ter sua nomeação atacada perante o STF por violação ao princípio da moralidade administrativa. Mesmo tendo saído, o Decotelli deixou sua marca negativa sobre o PR.

 

4.     Se a Câmara dos Deputados abrir processo de impeachment contra o Presidente é possível convocar as FFAA para paralisar o processo?

RESP – o uso da força só encontra justificativa para combater outra força. Os conflitos jurídicos, sejam de que nível forem, somente podem ser resolvidos dentro do devido processo legal. Aliás, já vimos dois casos e impeachment consumados e com a devida execução. Se se admitir que as FFAA podem obstar um processo de impeachment este instituto perde a importância. Aliás, também as FFAA, que passarão a servir de guarda particular do PR, seja ele quem for, o que é um rematado absurdo. As FFAA, a se admitir tal monstrengo, passarão para dentro do jogo político e passarão a defender este ou àquele PR, entrando no jogo partidário. Por outro lado, o fato de fechar temporariamente o Congresso não extingue o processo de impedimento, apenas o retarda, voltando logo após a reabertura, com mais uma causa, pois o PR, ao fechar o Congresso, cometeu outro crime de responsabilidade e também crime comum. O jogo é força contra força, direito contra direito. O jogo jurídico se resolve no confronto entre acusação versus defesa e o julgamento pelo órgão competente para julgar. Dentro desse quadro resumido, avultam o direito de ambas partes de produzirem as provas que o direito admite e o julgamento imparcial de quem julga, embora no impeachment haja um componente político que admite a parcialidade do órgão julgador, em desfavor do governante que perdeu a  legitimidade, pois, como se sabe, a legitimidade obtida no momento da eleição é mera fotografia daquele momento. Pode ser mantida, perdida, recuperada, sendo bobagem a afirmação de que o PR não pode ser impedido por ter “sido legitimamente eleito”. Todos o são. Se as FFAA impedirem o julgamento de um processo de impeachment pela força revogará o instituto e o tornará inútil. Mas, e se o PR mandar fechar?  É a hipótese de ordem ilegal à qual as FFAA devem negar cumprimento. O presidente só pode mandar aquilo que a Constituição autoriza que ele mande e na forma que ela autorizada. O Presidente da República não é uma pessoa, é um órgão. Suas diatribes pessoais, são suas e não podem provocar o descalabro do país. Admita-se que o PR mande as FFAA terraplanar a favela de Paraisópolis, em São Paulo. As FFAA deveriam obedecer?

 

5.     Se isto é possível então os ex-presidentes Collor e Dilma sofreram impeachment porque quiseram, pois poderiam usar a força militar e paralisar o processo. É assim mesmo? O impeachment é uma previsão tola na Constituição?

RESP – é verdade. A se admitir como válida essa interpretação, estarão revogados os crimes de responsabilidade e o PR poderá fazer o que lhe der na telha. Será um Nero, que poderá tocar fogo no Congresso impunemente, enquanto toca sua lira, ou um Calígula que converterá o Congresso em Incitatus e o PR cavalgará para gáudio dos seus seguidores. O processo de impeachment é um processo legal, com origem na Constituição, e está sujeito a um procedimento legal, não podendo, portanto, ser garroteado pela força, e as FFAA são um instrumento da Pátria e não do Presidente da República, embora este agora seja militar. O PR é, tão somente, a autoridade que deflagra a ação da força, não para si, mas para a defesa nacional e com as condicionantes da Lei Maior. A Constituição, por exemplo, autoriza o PR a declara a guerra e a celebrar a paz (art. 84, XIX), mas só poderá fazê-lo se estiver autorizado previamente pelo Congresso, se estiver este reunido, ou por este referendado, se estiver de recesso. Portanto, ato condicionado pelo Poder Legislativo e sob a supervisão de legalidade do Poder Judiciário.

 

6.     Se o STF, após autorizado pela Câmara de Deputados, receber denúncia, por exemplo, por obstrução de justiça, nos casos de Fabrício Queiroz e/ou Abraham Weintraub, pode o Presidente da República alegar enfrentamento entre os poderes e usar tropas para resolver o impasse?

RESP – não há impasse a resolver.  Com o recebimento da denúncia pelo STF, o PR é  afastado do poder por 180 dias (CF, art. 86) e já não detém o comando supremo das FFAA. Outra pessoa estará no exercício da Presidência (o Vice-Presidente, o Presidente da Câmara de Deputados, o Presidente do Senado ou o Presidente do STF, nesta ordem). Mesmo que volte ao poder após o afastamento, para aguardar o julgamento do exercício da função, não poderá impedir o julgamento do seu processo no STF, usando a força militar. Dando ordem nesse sentido, a ordem será ilegal e não pode ser obedecida. Mas e se quando voltar ordenar a paralização do processo?  Poderá ser obedecido, ou não. Se for, paralisa o processo, que retomara o seu curso quando a Constituição for restabelecida. Se não for obedecido, pega seu boné e vai embora, pois perdeu a condição. De todo modo, não se pode explicar a força pelo Direito. A força é a sua própria justificativa, mas é sempre bom lembrar da terceira Lei de Newton, pois a força fora e contra o direito provocará o surgimento da força em sentido contrário e muitas mortes surgirão por decorrência desse conflito desnecessário. É lição já praticada e, oxalá, aprendida. Ainda há generais no Brasil!

Continua...

 

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