- 18 de junho de 2025
APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS (III)
JOBIS PODOSAN
CLASSIFICAÇÃO DE JOSÉ AFONSO DA SILVA
Ante a diversificação de natureza das normas constitucionais, muitos autores têm tentado classificá-las, de modo a melhor aplicá-las. A classificação feita por JOSÉ AFONSO DA SILVA, hoje, com muita razão festejada, merece destaque especial.
A doutrina clássica, oriunda nos Estados Unidos, viu na Constituição dois tipos de normas: as auto-executáveis e as não auto-executáveis. As primeiras, por dispensarem medida legislativa, podiam ser direta e imediatamente aplicadas, sendo, portanto, normas dotadas da qualidade e da força natural às normas jurídicas em geral. As segundas, por exigirem a integração normativa infraconstitucional, foram chamadas programáticas, não produzindo qualquer efeito jurídico antes da edição da legislação concretizadora. Toda a força normativa do dispositivo programático ficaria dependente do pronunciamento do legislador ordinário. A criatura podia indefinidamente conter o criador e, mais que isso, podia contra ele se voltar. Talvez por isto, MAXIMILIANO tenha acentuado, em posição extremada, que “tem sido perigosa a ideia fixa de notáveis homens públicos do Brasil. Assim como é rara, dificílima, uma lei apenas interpretativa, meramente declaratória de outra, assim também, pela mesma razão, quem se propuser a regulamentar o disposto no Código fundamental de fato modificará, ampliará ou restringirá o sentido rigoroso do texto”. Observe-se que o comentarista citado escreveu sobre a constituição de 1891 que, embora também contivesse normas dependentes de regulamentação, as possuía em muito menos quantidade e diversidade de matérias.
A classificação de JOSÉ AFONSO DA SILVA, como ele mesmo o diz, leva em consideração, diferentemente de certa doutrina que menciona, que as normas contidas numa constituição rígida têm a mesma dignidade constitucional.
REGINA MARIA MACEDO NERY FERRARI, em sua tese de doutoramento, na qual obteve a nota máxima, abeberando-se também nos ensinamentos do mestre citado, ensina que
Todas as normas que integram uma constituição do tipo rígido comungam da mesma natureza. Isso significa dizer que, em decorrência da rigidez constitucional, todas as suas normas são constitucionais, vale dizer, comungam do mesmo nível de superioridade hierárquica. Dessa forma, em que pese haver, em um mesmo documento constitucional, regras de diversos tipos, que postulam diferentes finalidades, pode-se reconhecer que formam um sistema de normas que se condicionam reciprocamente.
Cita, a mesma autora, lição de RUI BARBOSA, para quem “em uma constituição não existem cláusulas com o sentido de meros conselhos, avisos e ilações, todas têm a força imperativa de regras ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos”.
No sistema europeu, não fica tão clara a posição das normas constitucionais programáticas. É que, nesse sistema, como o Poder Judiciário não pode censurar a lei por inconstitucionalidade — porque a presunção de constitucionalidade para ele é absoluta — a lei poderá violar a norma constitucional programática e, mesmo assim, valer. Já nos sistemas em que o controle é difuso, podendo o Judiciário negar aplicação à lei inconstitucional, não há dúvida sobre a força imperativa, ao menos impeditiva, das normas constitucionais programáticas.
GERALDO ATALIBA aponta da Itália ventos novos, cujos ecos nos chegam pela obra do Professor VEZIO CRISAFULI, da Universidade de Trieste, a quem repugnou a ideia de haver na Constituição normas que pudessem ser violadas pelo legislador ordinário. Propõe o autor italiano, em um ensaio intitulado Eficácia das Normas Constitucionais Programáticas, publicado em 1951, o estudo dos seguintes pontos:
1. O reconhecimento da eficácia normativa também das disposições constitucionais exclusivamente programáticas, as quais enunciam verdadeiras normas jurídicas que são por isso preceptivas, não menos que as outras, se bem que dirigidas originária e diretamente apenas aos órgãos do Estado e principalmente (com certeza, pelo menos,) aos órgãos legislativos;
2. O reconhecimento, na ordenação vigente, da natureza propriamente obrigatória do vínculo decorrente das normas constitucionais programáticas aos órgãos legislativos, como a consequência da eficácia formal prevalecente, de sua fonte (a Constituição), relativamente a outras leis ordinárias;
3. O reconhecimento, por isso, da invalidade das leis subsequentes, que se ponham em contraste com a norma constitucional programática e – segundo a corrente doutrinária que parece preferível – também das disposições de leis preexistentes, se e enquanto com estas contrastantes;
4 O reconhecimento, enfim, da presença no texto constitucional de um terceiro tipo de disposições normativas, contendo normas não programáticas, entretanto insuscetíveis de imediata aplicação por razões técnicas, ou seja, porque carentes de integração, por obra de oportunas normas legislativas instrumentais, às quais estas seriam portanto praticamente condicionadas ainda ao cumprimento de determinadas operações administrativas ulteriores.
GIUSEPPE CHIARELLI, outro autor italiano, chama a atenção para o fato de serem programa e norma coisas distintas. Esta é regra de ação e aquela uma pretensão. Sugere que, sendo assim, a expressão norma programática encerra, em si, uma contradição de termos. Se a constituição é um ato de vontade normativa, não pode nela se conceber a existência de norma sem força coativa.
Propõe o citado autor uma classificação fundada em dois critérios distintos:
1. O critério para se determinar se a norma é completa:
a. normas completas, contendo inteiramente a regra jurídica, seja esta norma de comportamento ou de organização: pertencem a esta espécie as normas que possam dispensar disciplina legislativa ordinária da matéria à qual façam referência;
b. normas que requeiram integração, as quais, por seu lado, podem distinguir-se em (x) normas que requerem integração, mediante norma constitucional e (y) normas que requerem integração, mediante lei ordinária;
c. normas em branco, que remetem a outras normas sem determinar-lhes de qualquer forma seu conteúdo.
2. O critério do conteúdo da vontade normativa nela expressa:
a. normas reguladoras de relações e atividades;
b. normas enunciadoras de princípios gerais.
Assinala que integram esse segundo tipo aquelas normas que anunciam princípios para que a normatização infraconstitucional lhes defina os contornos e alca
O professor brasileiro JOSE AFONSO DA SILVA, tendo haurido em tais e outras fontes, sistematizou uma classificação que se tornou clássica.
Segundo ele, na Constituição poderemos encontra normas de três tipos:
1. normas de eficácia plena – a tendência moderna na doutrina constitucional revela-se no sentido de dar à Constituição a máxima eficácia e por isto mesmo, são definidas como aquelas que não necessitam da intermediação do legislador para serem imediatamente aplicadas;
2. normas de eficácia contida – são aquelas que, promulgada a Constituição, nascem com eficácia plena, todavia, o legislador ordinário, por expressa permissão constitucional, pode lhes reduzir o alcance. Por tal razão MICHEL TEMER as prefere chamar de normas de eficácia redutível ou restringível. Parece-me que ambas as denominações estão corretas, dependendo apenas do momento que se as analise. Observe-se a norma do art. 5º, XIII: é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Há profissões que a lei regulamentou e outras que não. Em relação às profissões já regulamentadas, a norma será de eficácia contida, porque a lei conteve a liberdade prevista na norma constitucional. Já em relação às profissões não-regulamentadas, como a norma ainda tem eficácia, é adequada a denominação do professor TEMER, porque o legislador ordinário, podendo reduzir a eficácia da norma constitucional, ainda não o fez;
3. normas de eficácia limitada – dependem da emissão de vontade do legislador ordinário para integrar a vontade do constituinte emprestando-lhe eficácia, tornando possível, com a regulamentação, atingir os fins colimados pelo constituinte. Divide-as – professor AFONSO DA SILVA – em normas de princípio institutivo e normas de princípio programático. As primeiras corporificam, através da lei, instituições previstas na constituição. É desse tipo, por exemplo, a lei complementar prevista no art. 134, parágrafo único da Constituição Brasileira vigente, que organiza a Defensoria Pública da União. Já as normas do princípio programático, anunciam uma intenção, um programa governamental que o constituinte desde já explicita e impõe. Poderia deixar ao discrimen do legislador ordinário a própria concepção do programa. No entanto, como considerou prioritária a opção, desde logo a adotou em suas linhas gerais, impedindo que o legislador ordinário possa decidir no sentido inverso, cabendo a este apenas a especificação.
A classificação do professor JOSÉ AFONSO é, para o nosso estudo, importante, em razão de que temos, entre as leis complementares previstas na Constituição, as três espécies que o mestre menciona, sendo algumas delas facilmente encaixáveis na classificação e outras de muita dificuldade, em virtude das consequências que apresentam a depender de como sejam entendidas. O tempo certamente tornará superada essa discussão mas, no momento, o assunto guarda alguma relevância.
Observe-se o caso da norma do art. 14, §9º:
§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta
A lei complementar indicada refere-se a outros casos de inelegibilidade porque nos parágrafos anteriores arrola diversas hipóteses que desde logo menciona. Com isso, num mesmo artigo da Constituição, temos uma parte de eficácia plena e outra de eficácia limitada. Sem a edição da lei complementar referida no §9º, embora já se tenha conhecimento do fim visado pelo legislador, não se poderá, por via de interpretação, integrar a vontade do constituinte. Foi por esta via que o legislador complementar editou a Lei complementar nº 64/90 e a chamada Lei da Ficha Limpa.
APLICABILIDADE DAS LEIS COMPLEMENTARES
Promulgou-se uma Constituição escrita em um país qualquer dos confins da terra! Terá ela a magia irradiadora dos seus efeitos imediatamente? Quedar-se-ão todos os cidadãos aos seus efeitos? Surge uma Constituição escrita dos embates e dos enfrentamentos dos diversos grupos que compõem uma sociedade. Uma Constituição limita poderes, amplia direitos, beneficia e prejudica. Há resistências para a decisão de editá-la, de elaborá-la e de cumpri-la. Traz em si uma esperança e um germe do seu próprio descumprimento. Os que dela se beneficiam, a amam. Aos que ela prejudica, intentam mudá-la. Esse embate é eterno: foi, é e será assim. As constituições escritas são frutos da razão. Descobriu o homem, na sua sofrida marcha em busca da felicidade, que poderia interferir, pela inteligência, nas contingências do seu lento evoluir histórico, precipitando os acontecimentos, passando da constituição vivida para a constituição construída, da real e efetiva sempre existente, para uma constituição escrita, modelada pelo engenho humano, portadora de um traçado novo.
Se os homens — que se acham, cada um, portadores da razão — fossem realmente racionais, o constitucionalismo — movimento pelo qual ficou conhecido como a tendência de se adotar uma constituições escritas, deflagrado a partir da Revolução Francesa de 1789, principalmente em função do art. 16 da Declaração: qualquer sociedade dentro da qual a garantia dos direitos não for assegurada, nem a separação de poderes determinada, não tem constituição — deitaria raiz com mais facilidade. Os homens são, no entanto, guiados pelo farol dos seus interesses e, com tal vetor, tudo que dele discrepa passa a ser ruim e tudo que com ele concorda passa a ser bom. Assim, tenho como boa a constituição que acasala com os meus interesses e como ruim a que deles se afasta. Se sou um grande proprietário de terras, refuto a reforma agrária, seja qual for a sua concepção. Como não sou banqueiro, aplaudo a redução das taxas de juros. Se sou exportador e a globalização atende aos meus interesses sou a favor da globalização. A grande luta para fazer eficaz a constituição vigente está na contraposição dos interesses divergentes. Fazer vigente uma constituição é tarefa fácil. Fazê-la eficaz, é dificílimo.
As leis complementares, porque integram a Constituição escrita, seguem-lhe a sorte, com a agravante de ser uma lei de quorum mais dificultoso para ser aprovada. Certos autores chegam a classificar as leis complementares como semirrígidas, em função do quorum especial para a sua elaboração e alteração e da especificação das matérias no texto constitucional.