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INSEGURANÇA - A era do medo

Referendo sobre venda de armas trouxe à tona o debate sobre a criminalidade e revela que os brasileiros se sentem reféns da violência. Especialistas apontam dificuldades e possíveis soluções para o problema


André Carravilla e Paloma Oliveto
Da equipe do Correio

Tratada há décadas como assunto de polícia, a segurança pública começa a ser discutida pela população sob a ótica dos direitos da cidadania. O resultado do referendo sobre a venda de armas e munições deixou um recado: o brasileiro está com medo e não confia na capacidade de proteção do Estado. Seis especialistas ouvidos pelo Correio apontam os principais equívocos na condução do Plano Nacional de Segurança Pública, lançado em 2003, e os caminhos para prevenção e combate à criminalidade. Esta semana, o governo brasileiro foi duramente criticado no Comitê das Nações Unidas sobre Direitos Humanos. A falta de informações sistematizadas sobre os crimes e de resultados dos programas implantados foram os principais pontos apontados pelos relatores da ONU. A acusação de descaso também foi feita pela Anistia Internacional, em relatório enviado à ONU.

Os especialistas brasileiros são unânimes ao assegurar que a questão está longe de ser resolvida somente com a compra de armas e viaturas. "O investimento em programas sociais que promovam não só a transferência de renda, mas a inserção no mercado de trabalho, são essenciais porque criam um cinturão que não permite a ida das pessoas à criminalidade por falta de opção", afirma Robson Sávio Souza, do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Os especialistas também explicam que a sensação de insegurança que tomou conta da população deve-se ao fato de a criminalidade, antes restrita a áreas pontuais, como favelas e zonas periféricas, ter se espalhado. "A insegurança é uma doença social que não respeita fronteiras", ressalta George Felipe Dantas, coordenador do Núcleo de Estudos em Segurança Pública e Defesa Social de Brasília. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), divulgada durante a semana, revela que a violência é um dos problemas que mais incomoda os moradores das 27 capitais do país.

Um dos desafios que o governo tem pela frente é o de se adaptar à nova realidade da violência. "A formação de policiais não acompanha a complexidade social do mundo contemporâneo", destaca César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFCE). O cientista político Geraldo Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp), alerta para a falta de diálogo entre os governantes: "O entrave é político. Eles não sentam para resolver o problema e, com isso, a tendência é de agravamento".

A sensação de que o crime compensa, estimulada por políticos que saem ilesos dos escândalos de corrupção, é assimilada por parte da sociedade, acredita Teodomiro Dias, diretor do Instituto de Ciências Criminais e professor de Direito Penal da Fundação Getúlio Vargas. "As pessoas começam a desconfiar do Estado e isso contribui para construir uma cultura de violência", argumenta. Mas Dias faz uma ressalva: "O sentimento de insegurança está muito mais ligado aos crimes violentos. Ninguém tem medo de crimes como corrupção ou de poluição. As pessoas têm medo da morte".

Apesar das críticas, os especialistas tentam manter o tom de otimismo. "O mais importante é que a gente acredite que melhorar é possível. É muito fácil o governo federal empurrar a responsabilidade para os estados e os municípios dizerem que não têm nada a ver com o assunto. As coisas não são assim. Segurança Pública é um problema de todos", resume Julita Lemgruber, professora do Instituto de Criminalística da Universidade Cändido Mendes, do Rio de Janeiro, e uma das especialistas que participaram da formulação do plano de segurança do governo Lula.

Baixa remuneração

Em algumas partes do país, é muito tênue a linha que divide os policiais dos bandidos na percepção da população. O comportamento que gera desconfiança da sociedade em relação àqueles que deveriam garantir a sua proteção pode ser explicado pela baixa remuneração, defende o sociólogo César Barreira. A média de salário inicial de um policial militar é de R$ 1 mil. "A má remuneração faz com que ele busque complementação salarial na segurança privada, de forma clandestina. Daí surgem os grupos de justiceiros e de extermínio", afirma.

"Nos rincões do Brasil, a polícia é cúmplice do poder econômico. A situação de coronelismo vai demorar para acabar. Para isso, é necessário garantir independência à polícia e fazer com que ela recupere a sua credibilidade", completa o professor Teodomiro Dias. O secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Fernando Corrêa, não acredita que baixos salários justifiquem o desvio de comportamento de agentes, mas concorda que a remuneração está longe do ideal. "Estamos estudando um piso salarial para ser aplicado em todos os estados. O que é difícil é chegar a um consenso. A discussão é igual à do salário mínimo: sempre tem quem diga que o valor é muito elevado e pode criar um rombo nos cofres públicos", explica.


Profissionais despreparados

"A polícia brasileira é truculenta, trabalha muito pouco com a área de inteligência e prefere reprimir a prevenir", define o especialista em segurança pública Robson Sávio Souza. Ele acredita que os policiais não são capacitados para lidar com a comunidade, mas treinados para serem violentos. A professora Julita Lemgruber crê que o governo federal deveria investir e estimular o treinamento dos 500 mil policiais militares espalhados pelo país. "A Polícia Federal atua de forma competente em casos isolados e, com isso, passa a falsa impressão de que o governo está atuando nessa área. Não está. Até porque a nossa polícia não é preparada. Criaram a Força Nacional de Segurança Pública, que, ao meu ver, não produziu efeito prático", critica.

O grupo de elite submeteu, ao longo dos últimos dois anos, 3,5 mil policiais a um curso intensivo que incluía aulas de tiro ao alvo e direitos humanos. Para o secretário Luiz Fernando Corrêa, os agentes que participaram do curso foram mais do que alunos: "Eles são multiplicadores, repassam o que aprendem para seus colegas nos estados", sustenta. O governo quer inaugurar, em 18 de novembro, 60 telecentros em todos os estados, onde os policiais terão aulas de capacitação por vídeo. O secretário espera que, em três anos, todo o efetivo do país tenha participado do curso.

Trabalho sem integração

A falta de integração entre as diferentes polícias - Civil, Militar e Federal - é outro problema apontado por especialistas. "Deviam usar o exemplo dos Estados Unidos. O grande salto da polícia de Nova York foi a revolução gerencial, em que toda semana, os chefes das polícias de todas as áreas se reuniam e trocavam informações porque sabiam que todos os tipos de crime estão interligados", afirma a professora Julita Lemgruber.

"Para que o Plano Nacional de Segurança Pública seja aplicado, é preciso um grande pacto entre os governos para trocar dados e fazer avaliações das atuações", acredita o especialista Robson Sávio Souza. O Ministério da Justiça garante que o intercâmbio de informações já começou.

O Sistema Único de Segurança Pública criou o Infoseg, mecanismo por meio do qual qualquer delegacia do país pode acessar os dados sobre inquéritos, antecedentes criminais e carteira de habilitação dos suspeitos. Mas reconhece que o ideal seria que o acompanhamento se estendesse aos tribunais, instrumento disponível para poucos estados. "No primeiro ano do governo Lula, tentaram fazer isso, mas a troca de informações não teve continuidade", critica o especialista Robson Sávio Souza.


À mercê dos bandidos

No início da década de 1980, o surto de urbanização levou ao crescimento desordenado das grandes cidades brasileiras, que formaram bolsões de pobreza onde o Estadobrasileiro tem dificuldades de se fazer presente. "As comunidades cresceram excluídas, sem escolas, áreas de lazer nem atendimento à saúde. Nas favelas e nas periferias dos centros urbanos, as regras que imperam são diferentes daquelas ditadas no asfalto. A criminalidade acaba preenchendo o vazio deixado pelo Estado", explica o especialista George Felipe Dantas.

"Essa é a hora onde as prefeituras mais podem agir, promovendo intervenções urbanísticas e recuperando as áreas degradadas. Fechando hotéis que servem de locais para a prostituição e instituindo a Lei Seca, que obriga os bares a fecharem em determinado horário", defende o professor Teodomiro Dias.

O Ministério da Justiça reconhece as dificuldades de fazer com que a polícia esteja presente em lugares onde a miséria permitiu que traficantes sejam vistos como benfeitores. Assessores da Secretaria Nacional de Segurança Pública garantem que a orientação dada aos governos estaduais é a de que as polícias negociem com as lideranças comunitárias das localidades.


Legislação em xeque

A avaliação sobre a legislação penal do país está longe de ser unanimidade. "Temos leis suficientes, o que falta é aplicá-las", acredita Julita Lemgruber. Ela lembra que a cada caso de violência de grande repercussão internacional, o país se debruça sobre a possibilidade de criar novos dispositivos legais. "Isso aconteceu com a lei de crimes hediondos", lembra, referindo-se à tipificação penal criada após o seqüestro do empresário Roberto Medina, em 1990. Há quem considere que a legislação atual está longe de ser suficiente para conter a criminalidade. Na Câmara dos Deputados, existem projetos em tramitação sobre reformas no sistema de segurança pública.

O cientista político Geraldo Cavagnari defende temas polêmicos, como a aplicação de prisão perpétua e a redução da maioridade penal. "O Estatuto da Criança e do Adolescente não protege jovens, forma bandidos", acredita. O especialista Robson Sávio Souza remete ao sociólogo Gilberto Freyre para avaliar a estrutura da Justiça criminal brasileira: "Ela reproduz a lógica da Casa Grande e Senzala. Só os excluídos sociais vão parar na cadeia. Além do mais, o sistema prisional é desumano, superlotado e não recupera ninguém", critica.


Inimigo desconhecido

O povo está sem segurança, e o governo, sem números. "Um plano de segurança começa pelo diagnóstico, segue com a ação, para depois ser implementado. Por último, se checam os resultados. Não fizeram nem o bê-á-bá. Isso, na Europa e nos Estados Unidos, é feito com freqüência", compara Julita Lemgruber. Com base em dados extra-oficiais das secretarias estaduais de segurança pública de São Paulo e do Rio de Janeiro, a professora informa que a polícia fluminense resolve menos de 4% dos homicídios, e a paulista esclarece 16% dos casos. George Felipe Dantas aponta mais um problema em relação à falta de informações: "Às vezes, a população pode superestimar a criminalidade por não ter acesso aos dados. Com isso, esvazia o espaço público, refugiando-se em casa. Os bandidos, então, passam a ocupá-lo".

O governo não dispõe de dados sobre o percentual de homicídios esclarecidos pelas polícias de cada estado, assim como não sabe quais os tipos de delitos mais praticados em cada parte do país. O levantamento mais recente do Ministério da Justiça é ainda de 2003. O secretário nacional Luiz Fernando Corrêa promete que até o final deste ano fechará os dados referentes a 2004. Apresentará uma lista com os tipos de crimes cometidos em cada estado, mas ainda não tem condições de informar a eficácia da polícia por meio das estatísticas sobre casos resolvidos.


Orçamento minguado

"Os investimentos de um governo em uma área refletem o quanto ela é prioritária", acredita Julita Lemgruber. Para efeitos de comparação, a verba da Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo é de R$ 6 bilhões, enquanto o governo federal limitou o orçamento da área, em 2005, a R$ 412 milhões. "Mas só receberam autorização para investir R$ 270 milhões", reclama.

Dentro do governo, as restrições impostas pela equipe econômica também são alvo de críticas: "É mesmo pouco", reconhece Luiz Fernando Corrêa. "Mas não conheço nenhum secretário de governo estadual ou federal que esteja satisfeito com o que tem", resigna-se. O especialista Robson Sávio Souza lembra que não há dinheiro que pague a falta de competência na gestão dos recursos. "Não podemos ser hipócritas e atribuir a falência da segurança pública somente à falta de dinheiro. Do que adianta ter verba e não saber aplicá-la nas áreas necessárias?", questiona. (AC e PO)

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