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Crônica do Aroldo - PODERES CONSTITUÍDOS

Como era de praxe, o médico plantonista e seus auxiliares não se encontravam na repartição para execução de seus serviços ("Azar de quem morre no sábado..."). Como também era de praxe, a geladeira para conservar presuntos estava quebrada.


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Morreu o deputado João Mandubé. Morte súbita. Enfartou enquanto dirigia rumo ao seu sítio. O corpo, localizado muitas horas depois do ataque, já em rigidez cadavérica, foi recolhido ao Instituto Médico Legal para exames e laudos de praxe. Como era de praxe, o médico plantonista e seus auxiliares não se encontravam na repartição para execução de seus serviços ("Azar de quem morre no sábado..."). Como também era de praxe, a geladeira para conservar presuntos estava quebrada. Os parentes do defunto, tentando adiar a putrefação, acomodaram-no numa daquelas bacias metálicas coletoras de corpos e derramaram à sua volta 10 sacos de gelo em cubos. Alguém preocupado com a saúde do finado, ainda perguntou: "Será que ele não vai gripar"?

O corpo de João Mandubé, liberado na manhã de domingo, foi conduzido para o plenário da Assembléia legislativa onde seria velado. Acomodado no ataúde, entre novas camadas de gelo em cubos, foi coberto com as bandeiras do Estado, do partido e do time do Arranca Toco Futebol de Várzea, sua paixão. Aquelas bandeiras, além de homenagear o defunto, ajudariam a concentrar a baixa temperatura à sua volta.

Parentes, amigos, desafetos, inimigos e curiosos, ali no salão, cumpriam à risca o ritual de um velório: de tudo se falava, de tudo se tratava; o que menos importava era o morto. José Necupina, suplente do finado, mais grosso do que apito de navio, preocupava-se em não amarrotar seu único terno; tinha que preservá-lo para a sua posse na manhã de segunda-feira. Durante as rezas e cânticos puxados pelas carpideiras, tocou o celular do futuro deputado que atendeu sussurrando:

- Não posso falar agora... Tou num velório...

- Aqui é Ana, sua secretária... Velório de quem?

- Do deputado João Mandubé...

- Ah..., O deputado morreu?

- Não! Como ele já tava com 74 anos, o pessoal achou que ele tava durando muito e decidiu enterrá-lo vivo... - E desligou aborrecido.

De repente um corre-corre: o governador tinha acabado de chegar com seus asseclas, digo, assessores mais próximos. Afasta daqui, arranjam-se cadeiras dacolá, a autoridade demorou-se um pouco ao lado do caixão - não sei se orando ou dando graças a Deus, pois Mandubé era ferrenho adversário das suas políticas paternalistas - e, logo, sentou-se entre os seus auxiliares. RaimundoMariola, um puxa-saco-militante de plantão, sabendo que o governador era apreciador de uísque, providenciou uma garrafa de "red label", grosseiros copos de vidro e um recipiente plástico onde colocaria gelo. A geladeira da assembléia que foi aberta e fechada muitas vezes durante toda a manhã teve a sua produção esgotada. "Ai, meu Deus... E agora?" Numa brilhante idéia, Mariola dirigiu-se ao caixão, meteu a mão sob as bandeiras que cobriam o decúbito e encheu a vasilha plástica com muitos cubos da água solidificada. Na primeira rodada de uísque, todas as pedras foram consumidas e o puxa-saco-militante fez nova incursão ao ataúde. E mais uma... E outra... Pedro Corisco, compadre do morto, ao ver Raimundo naquela apropriação indébita, segurou-lhe com firmeza o braço direito e falou:

- Nani-nani-nani... Nada disso... Esse gelo é do compadre!

- Calma, Pedro. Só preciso de umas pedrinhas para o uísque do governador.

- Arranje noutro lugar. Se o compadre estivesse vivo, ele não cederia do seu gelo pra esse cabra safado...

- Olha, Pedro, eu vou levar esse gelo sim! Numa democracia os poderes têm que se respeitar... Além do mais João Mandubé "ERA" um simples deputado estadual; o doutor Pedreira "É" o governador. Não venha querer subverter a ordem dos poderes constituídos. Vou levar a porra desse gelo e pronto! - Encheu a cumbuca e, em seguida, serviu generosa porção do gelo adefuntado no copo do governador.

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  • 04 de novembro de 2024
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