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VEJA - O PT assombra o Planalto

Alvejado pela acusação de comprar deputados com mesada de 30 000 reais, o PT vê desmoronar seu discurso ético e enfrenta uma crise que, no seu desdobramento mais dramático, pode afundar o governo junto


Revista VEJA

As denúncias explosivas do deputado Roberto Jefferson, o homem-bomba do PTB, detonaram a mais grave crise política dos últimos anos e jogaram uma espessa nuvem de fumaça sobre o futuro próximo. Ao contar, numa gravíssima entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, que o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, pagava mesada de 30.000 reais aos deputados do PP e do PL, Roberto Jefferson fez uma vítima poderosa: o PT, essa legenda que, acalentada no berço por sindicalistas, estudantes e intelectuais e alçada ao comando do país aos 22 anos de vida, senta agora no banco dos réus para ser acusada de carregar a mala preta, imagem-síntese da roubalheira nacional, para corromper e subornar políticos.

Logo o PT, que, em todas as pesquisas de opinião, sempre apareceu em primeiro lugar como o partido mais "idôneo" e mais "confiável" do país. As denúncias de Roberto Jefferson ainda precisam de apuração, mas já acertaram o coração do PT, comprometendo seu discurso histórico em defesa da ética, e - o que é ainda mais grave - podem fazer sangrar o Palácio do Planalto. A pergunta inevitável é se Lula sabia das traficâncias do tesoureiro do PT. Antes mesmo que se tenha uma resposta sem rodeios a essa pergunta, o simples fato de a dúvida existir já atinge o presidente. Lula começou seu governo sendo comparado ao americano Franklin Roosevelt, presidente que venceu a II Guerra Mundial e tirou seu país da depressão econômica. Terá sorte se sair dele com a avaliação de que, pelo menos, foi diferente de Fernando Collor.

 


"Nós não aceitamos chantagem. Não me prejulguem pela versão de uma chantagem"

FALTOU EXPLICAR
Uma chantagem pressupõe a existência de um chantagista e de um motivo que a justifique. Soares não disse quem era o chantagista nem que informação ele teria para praticar a tentativa de extorsão

"Ponho à disposição meu sigilo fiscal e bancário"
FALTOU EXPLICAR
Evidentemente, Soares não teria tirado dinheiro da própria conta bancária para pagar propinas a deputados. A referência à quebra de seu sigilo telefônico - este, sim, fundamental nas investigações - não foi mencionada pelo tesoureiro

"Em trinta anos de militância, não acumulei bens nem vantagens. Tudo o que tenho foi com muito esforço"
FALTOU EXPLICAR
Soares não fez menção à acusação de que teria comprado, em dinheiro vivo, uma fazenda em Goiás, registrada em nome de parentes e com preço abaixo do valor de mercado

"Não tenho nenhum problema em encontrar com o presidente do PL (Valdemar Costa Neto), seja na minha casa, seja no escritório do PT"
FALTOU EXPLICAR
O tesoureiro também não disse os motivos que justificariam o fato de um petista sem cargo no governo federal encontrar-se com o principal dirigente de um partido da base aliada

Na entrevista, entre insinuações, provocações e recados explícitos ou velados, Roberto Jefferson disse que:

 O dinheiro das mesadas era entregue pelo tesoureiro Delúbio Soares a líderes ou presidentes dos partidos. Os deputados Valdemar Costa Neto e Bispo Rodrigues, ambos do PL, e Pedro Henry, do PP, recebiam e distribuíam nas suas bancadas.

 A mesada de 30.000 reais também foi oferecida ao PTB, mas ele, Roberto Jefferson, não aceitou a proposta.

 Em um ano de peregrinação para denunciar o caso, Jefferson relatou o episódio - pela ordem - aos ministros Walfrido Mares Guia (Turismo), José Dirceu (Casa Civil), Ciro Gomes (Integração Nacional), Miro Teixeira (então ministro das Comunicações) e Antonio Palocci (Fazenda).

 Em janeiro deste ano, contou ao presidente Lula em reunião com quatro testemunhas. Lula chorou. O pagamento da mesada foi interrompido. "Ele meteu o pé no breque", disse Jefferson.

 Contraditoriamente, a crise na base do governo no Congresso Nacional não resulta da suspensão da mesada, mas do fato de que o PT se recusou a aumentá-la para algo entre 50.000 e 60.000 reais mensais.

 

A reação à denúncia é um notável choque de versões. Houve desde ministro que fez silêncio sobre o assunto (José Dirceu) até ministro que confirmou tudo mas nada fez por falta de provas (Ciro Gomes). Houve ministro que confirmou só uma parte (Mares Guia) e ministro que negou tudo (Antonio Palocci). Houve, ainda, quem tenha confirmado até mais do que lhe foi perguntado. Miro Teixeira disse que recebeu a denúncia, mas acrescentou que Jefferson lhe narrou inclusive "uma cena de corrupção num ambiente ministerial". O presidente Lula, por sua vez, admitiu ter ouvido falar da mesada, porém ressalvou que não recebera uma denúncia, mas só um "comentário genérico", sendo que Jefferson não apontou "fatos" nem "pessoas". Lula mandou dizer que, ao tomar conhecimento disso, pediu a dois auxiliares que examinassem o assunto. Os dois souberam que a Câmara faria uma investigação quando o caso foi denunciado por Miro Teixeira ao Jornal do Brasil, em setembro de 2004. Mas, como Miro disse que não disse o que dissera ao JB, o caso foi arquivado na Câmara. E o governo se deu por satisfeito.

De todas as negativas e explicações, a mais impressionante veio do tesoureiro Delúbio Soares. Na quarta-feira, depois de dois dias escondido da imprensa, o tesoureiro, diligentemente escoltado pelo presidente do PT, José Genoino, apareceu diante de uma centena de jornalistas para explicar-se. Com lábios ressecados de nervosismo, vacilante e inseguro, Delúbio disse que estava sendo "caluniado e massacrado", mas não acusou Roberto Jefferson de ser um mentiroso. Não prometeu levá-lo às barras dos tribunais, não exigiu retratação e, na passagem mais lamentável, recusou-se a fazer uma acareação com seu detrator. Pior: disse que Jefferson, cujo nome não citou, fazia "chantagem". É uma declaração enigmática, já que chantagem pressupõe que o chantageado tenha culpa no cartório, pois do contrário não é chantagem, é blefe inócuo (veja quadro). Mas, antes que respostas esclarecedoras surgissem, Genoino levantou-se e encerrou a entrevista com linguajar de galpão: "Agora chega, vamos embora". O tesoureiro deixou a sede do PT sendo, como sempre, escoltado por batedores de motocicleta. Um luxo de autoridade.

O presidente Lula queria uma resposta mais firme e irritou-se com a decisão do PT de manter Delúbio Soares no cargo de tesoureiro. Na noite anterior à entrevista do tesoureiro, o presidente teve uma conversa áspera com José Genoino. Foi por telefone. Durou uns dez minutos. Segundo relato obtido por VEJA de dois ministros que testemunharam o diálogo, Lula acusou o PT de estar "acabando com o governo" e exigiu que o partido afastasse o tesoureiro do cargo enquanto as investigações fossem realizadas. No dia seguinte, ao saber que não fora atendido, fez um desabafo a dois ministros. "O PT não entendeu o tamanho da crise", disse. Falou mal do ministro José Dirceu, responsabilizando-o pela construção de uma base política tão irremediavelmente fisiológica. Criticou outros ministros petistas, como Patrus Ananias, do Desenvolvimento Social, e Humberto Costa, da Saúde, reclamando que nunca lhe apresentam soluções, apenas problemas. Poupou apenas o ministro Antonio Palocci, da Fazenda, que está se tornando cada vez mais o interlocutor mais assíduo e mais confiável de Lula.

O que o PT não entendeu é que será impossível e inútil tentar espantar a crise atual com palavreado vazio, como se a platéia fosse formada por uma massa de imbecis. Na segunda-feira de manhã, tão logo a entrevista-bomba de Jefferson chegou às bancas, o PT levou quase quatro horas reunido para, ao fim, lançar uma nota pífia. Sem a indignação dos injustiçados, a nota limita-se a dizer que as denúncias não têm "o mínimo fundamento na realidade" - e, oito horas depois, para desmoralização do teatro petista, o próprio presidente Lula confirmaria que ouvira, sim, o "comentário genérico" de Jefferson. Na nota, o PT ainda cai na estupidez de afirmar que a relação do partido com as legendas aliadas "se assenta em pressupostos políticos e programáticos" - e, um dia depois, com o partido novamente desmoralizado pela mais óbvia das evidências, um ministro viria a público dizer que o PT estava pagando o preço por andar com "más companhias", o que nada tem a ver com os tais "pressupostos políticos e programáticos".

Pagando um preço, literalmente: são 30.000 reais por mês para um plantel estimado de uns noventa deputados, o que daria cerca de 2,7 milhões de reais mensais. A mesada, que na gramática de Jefferson é mensalão, uma irônica referência ao apelido dado ao pagamento antecipado de imposto por contribuintes com mais de uma fonte de renda, é um segredo de polichinelo no Congresso. Na semana passada, VEJA conversou com três ministros, cinco deputados e um senador: todos confirmaram, com a condição de não ter a identidade revelada, a existência do mensalão. As nove fontes ouvidas pela revista pertencem a cinco partidos diferentes - são eles: PT, PMDB, PSB, PP e PFL -, mas todas informam que o pagamento era feito pelo PT. Esses políticos contam que Delúbio desembarcava em Brasília com o dinheiro e se dirigia à residência dos líderes e presidentes de partidos para fazer a distribuição. Novidade? Desgraçadamente, talvez não. Já começam a se solidificar com indícios os rumores insistentes de que a mesma prática foi adotada na gestão da ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy (veja reportagem).

É possível que a compra de deputados, se vier a se confirmar, seja uma expressão pecuniária do desprezo que o PT nutre pelo Parlamento. "O PT acredita que é um poder burguês. Por isso, acha que lá só tem corrupto e que o jeito mais fácil de controlá-lo é com dinheiro", afirma um dos petistas mais bem votados para deputado federal. É fato que o PT, sob o comando do ministro José Dirceu, fez a mais acintosa e violenta intervenção nos partidos representados no Congresso Nacional. O PL, por exemplo, saiu das urnas com 26 deputados e hoje tem mais que o dobro disso .- precisamente 53. O PP elegeu 49 deputados e hoje tem 54, com um crescimento bastante modesto. Já o PTB, o partido que não aceitou receber o mensalão, segundo Jefferson, cresceu de 26 para 47 deputados. Sabe-se lá à base de que argumentos ideológicos. A idéia, ao promover esse inchaço, nasceu de uma arrogância tipicamente petista: aumentava-se a base de apoio ao governo mas mantinha-se a pureza ética e ideológica do PT, sem contaminá-lo com a filiação de políticos fisiológicos e aventureiros.

O mensalão é um enorme desastre para o PT. O partido que encarnou as aspirações nacionais de ética na política e construiu uma liderança moral agora enfrenta o desafio de reinventar-se, sob pena de virar cinzas. O PT perdeu uma perna quando arriou sua bandeira de combate à "política econômica neoliberal", dado o fato de que o governo Lula aderiu - responsavelmente, diga-se - às práticas civilizadas do equilíbrio fiscal e manteve com ênfase redobrada a rota econômica do governo anterior. Restava seu discurso histórico em defesa da ética na política e da moralidade pública. Essa segunda perna começa agora a fraquejar. Terá o PT se degenerado numa máquina glutona que corrompe até seus militantes mais antigos? Um caso envolve um ex-professor de matemática, Delúbio Soares, que saiu de uma família humilde no interior de Goiás para virar um dirigente partidário - perfil clássico de petista. Em outro caso, o acusado de cobrar propina é um ex-professor de geografia, Hugo Werle, sujeito de classe média que vira funcionário público ao assumir o Ibama em Mato Grosso - outra biografia-padrão de petista (veja reportagem). São eles os novos corruptos?


O PT já atravessou várias crises. A última, que colocou em campos opostos o Palácio do Planalto e uma parte do partido, aconteceu durante o debate em torno da aprovação da reforma da Previdência Social. Agora, porém, a natureza ética da crise torna as coisas ainda mais confusas e imprevisíveis. Na bancada do PT, na semana passada, havia praticamente unanimidade sobre os casos de corrupção nos Correios e no IRB e também sobre o pagamento de mesadas - mas todos ressalvavam a figura do presidente Lula. Em São Paulo, o secretário-geral do PT, Silvio Pereira, o outro membro da cúpula petista que, segundo as palavras do ministro José Dirceu, não conseguiria escapar de uma CPI minimamente bem-feita, queria pedir licença do partido para defender-se. Foi demovido, mas fez um desabafo: "Depois do que vi nesta semana, não confio em mais ninguém. Só na minha família e em meus amigos". Não se conhecem os motivos exatos da irritação de Silvio Pereira, mas o fato é que a ameaça de Jefferson - de que, se caísse, levaria junto José Dirceu, Delúbio Soares e o próprio Silvio Pereira - começou a materializar-se na semana passada com as denúncias contra o tesoureiro.

A crise, no entanto, não está apenas no PT. O Palácio do Planalto ainda pode vir a ser atingido em cheio por ela. Em primeiro lugar, porque Delúbio Soares sempre foi um desenvolto freqüentador do Paládio do Planalto. Não era uma sombra oculta nos desvãos do poder, como seu antecessor PC Farias no governo de Fernando Collor. Além disso, na semana passada o governo tentou tomar distância do mensalão, mas escolheu um caminho risível. Ao comentar o assunto, o ministro Aldo Rebelo tentou dizer que isso não afetava o governo, pois era uma denúncia de pagamento do PT e outros dois partidos (PL e PP). Ora, a quem interessa que os deputados do PL e do PP votem a favor dos projetos do governo? Por acaso o PT virara só uma espécie de "especulador de partidos", comprando legendas na baixa para vendê-las na alta? E tudo isso sem nenhum outro interesse além do de faturar uma graninha? A senadora Heloísa Helena, expulsa do PT há um ano e meio e hoje filiada ao PSOL, tem uma explicação explosiva para as atividades de Delúbio e Waldomiro Diniz, aquele ex-assessor de José Dirceu que foi pilhado pedindo propina. "Se Delúbio, Waldomiro e outros, entre aspas, quadros partidários agiam, é porque havia autorização e leniência do presidente Lula", afirma a senadora. "Pelo que eu conheço do PT, não existe atuação individual."

O presidente Lula parece ter sucumbido à perplexidade desde que VEJA trouxe a primeira reportagem mostrando a corrupção nos Correios e, depois, no IRB. Mas, na semana passada, finalmente adotou uma linha correta e mais vigorosa. Demitiu as diretorias das duas estatais sob suspeita, mandou os governistas apoiarem a criação da CPI dos Correios e defendeu a reforma política, que se esconde na origem da bagunça partidária e da feira fisiológica que se realiza no Congresso. Fez, ainda, seu melhor discurso desde que a crise começou. Ao discursar na abertura de um fórum sobre corrupção promovido pela ONU em Brasília, Lula disse que, se for necessário, vai "cortar na própria carne" e, demonstrando clareza, diagnosticou: "O que está em jogo é a respeitabilidade das nossas instituições, das quais sou o principal guardião". Com isso, a CPI dos Correios saiu do papel. Mas outra está a caminho - a CPI do Mensalão. O pedido de abertura foi apresentado por PPS, PV e PDT, depois que correu a suspeita de que petistas e tucanos fizeram acordo para que a CPI dos Correios acabasse em pizza. "Não vamos permitir que qualquer acordo impeça a faxina ética que o país exige", diz o senador Demostenes Torres, do PFL de Goiás.  

Mesmo tendo adotado um rumo correto para fazer frente à crise, o presidente Lula esteve desanimado na semana passada. Chegou a comentar, em conversas reservadas com interlocutores mais íntimos, que perdera o ânimo para disputar a reeleição e que seu objetivo, agora, teria passado a ser encerrar bem seu mandato e evitar um processo de impeachment. Sim, falou-se na palavra impeachment, uma possibilidade que passou a ser discutida não apenas nas rodas de oposição, mas também no principal gabinete do Palácio do Planalto. Tudo o que Lula dizia querer, na semana passada, era lutar para preservar sua biografia, marcada por uma honestidade de propósitos e pela defesa da ética. Para um ministro, Lula comentou: "Não vou segurar ninguém acusado de corrupção. Esse governo não é conivente com corruptos e não vou manchar minha biografia". Que assim seja.

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