- 12 de novembro de 2024
Governo defende a aplicação de penas alternativas ao mesmo tempo em que juízes condenam por furto de xampu e biscoito
Erika Klingl e Paloma Oliveto
Da equipe do Correio
Cerca de 66 mil brasileiros condenados pela Justiça cometeram crimes de baixíssimo potencial ofensivo e poderiam estar cumprindo penas alternativas. O número equivale a 20% de todos os condenados, de acordo com estudo do próprio Ministério da Justiça. São pessoas que estariam prestando, por exemplo, serviços à comunidade, como trabalhar em um hospital ou dar assistência em uma creche, em vez de perder todo contato com a sociedade. "As penas alternativas são solução para quem cometeu pequenos crimes. É claro que não podem ser aplicadas para qualquer tipo de delito", argumenta Leila Paiva, da Secretaria Nacional de Justiça.
Uma das experiências de maior sucesso no Ceará, um estado-modelo na aplicação de penas alternativas, é a limitação de fim de semana para voltar à sala de aula. A pessoa que cometeu o crime, como porte de uma pequena quantidade de drogas, por exemplo, tira cinco horas de seu sábado e cinco horas de seu domingo para retomar os estudos. "Longe de representar impunidade, o condenado cumpre sua pena sem perder emprego ou convívio com a família", explica Leila.
Solução barata
As penas alternativas constituem medida eficaz porque evitam que um réu primário que tenha cometido crime de pequeno potencial ofensivo seja encaminhado ao sistema penitenciário e ao convívio com autores de crimes graves. Além disso, ela é muito mais barata para a União. Atualmente, o gasto médio com um preso no Brasil é de R$ 800 por mês, ao passo que o monitoramento de uma pena alternativa custa, em média, R$ 70 mensais.
Enquanto o Ministério da Justiça defende a aplicação de penas alternativas, porém, ainda há quem seja preso por causa de um pote de xampu. Foi o que aconteceu com Maria Aparecida de Matos, 24 anos, que ficou encarcerada por um ano e sete meses, acusada de tentar furtar um xampu e um condicionador no valor de R$ 24 da Drogaria Raia, em Jaguaré, zona oeste de São Paulo. O caso ganhou repercussão em São Paulo depois de uma agente do movimento católico Pastoral Carcerária denunciá-lo à organização não-governamental Mulheres Encarceradas (Ong), formada por advogadas. Depois de aparecer nos jornais locais e estarrecer os paulistas, a história terminou na segunda-feira passada, com a libertação de Maria Aparecida, determinada pelo Superior Tribunal de Justiça.
O caso da jovem, porém, não é exceção. Só a advogada Sônia Regina Arrojo e Drigo, que defendeu Maria Aparecida, cuida de outros 17 casos semelhantes. Em 18 de março deste ano, Rosimeire Rosa de Jesus, 33 anos, foi condenada a 11 meses e 20 dias de reclusão e sete dias-multa. Ela estava presa desde 20 de agosto de 2004. Motivo: tentou furtar uma ducha elétrica em um supermercado. O segurança do estabelecimento assistiu à cena pelo monitor, esperou que ela saísse e a seguiu, juntamente com a Polícia Militar. A prisão foi arbitrária, segundo Drigo. "Quando o furto é monitorado por sistema interno pela vigilância, não é crime. Chama-se furto vigiado, logo, um crime impossível", ressalta a advogada.
Solta no último dia 17, Jaqueline Aparecida da Silva, 24 anos, passou toda a gravidez e ganhou seu filho dentro do sistema prisional por causa de nove barras de chocolate, um pacote de biscoito, chá, refresco e doce de leite. Presa no dia 30 de agosto de 2004, teve como pena nove meses e dez dias de reclusão, além de três dias-multa.
Pressão por prisões
Segundo a advogada Letícia Massula, que também faz parte da Ong Mulheres Encarceradas, o endurecimento do Judiciário acontece em um momento no qual, em pânico, a sociedade pressiona por mais segurança pública. "As pessoas estão apavoradas. O imaginário coletivo quer a punição. Mas prender pessoas por crimes insignificantes é uma burrice. Os presídios são escolas do crime e elas vão voltar para a sociedade um dia. Qual o perigo que alguém como a Maria Aparecida realmente representa?", questiona.
O descaso de autoridades também é uma evidência nas histórias de prisões banais. A advogada Sônia Drigo conta que o processo de Maria Aparecida foi uma sucessão de erros. A começar pela prisão arbitrária. Negra, pobre e com retardo mental, a mulher foi abordada no dia 17 de maio de 2004 por um policial militar, que a mandou abrir a bolsa. Lá dentro estavam um xampu e um condicionador, com etiqueta da Drogaria Raia. O gerente confirmou ao PM que tinha sentido falta dos produtos e Maria Aparecida foi levada para a 91ª Delegacia de Polícia, negando a tentativa de furto.
Na DP, ela foi impedida de ligar para a família. Passou a noite na cadeia pública de Pinheiros e, no dia 10 de agosto, foi para o Fórum de Barra Funda. Lá, foi espancada. Maria Aparecida foi levada para o Hospital de Custódia de Franco da Rocha no dia 17 de agosto com queimaduras de segundo grau, o corpo machucado, e o rosto gravemente ferido - ela perdeu a visão do olho direito. A perícia, porém, apontou "lesão de natureza leve".
O juiz de primeira instância não concedeu liberdade a Maria Aparecida, e o Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou pedido de liminar em um habeas corpus impetrado por Sônia Regina Arrojo e Drigo. "Houve muito descaso e, quando os erros começaram a ser expostos, a Justiça queria que eu calasse a boca e jogasse tudo debaixo do tapete", afirma a advogada.
Também por causa de um cosmético avaliado em R$ 33,54, Maria Aparecida Vieira, 43 anos, foi presa em uma perfumaria, antes de passar pelo caixa, em 10 de novembro de 2004. Foi denunciada por furto consumado, porém, ainda que tivesse colocado o produto na bolsa, como não havia ido ao caixa, não houve furto algum. Grávida de oito meses, teve liberdade provisória concedida em 15 de março deste ano.