Cento e dezessete anos depois da abolição da escravatura, 25 mil pessoas ainda trabalham, no Brasil, em condições análogas às da escravidão, segundo o relatório da Organização Internacional do Trabalho. O documento, lançado simultaneamente em Brasília e Genebra, é o primeiro levantamento quantitativo realizado pela entidade, que utilizou dados do Ministério do Trabalho e Emprego e de organizações não-governamentais. Apesar do número expressivo de cativos, o Brasil foi citado como exemplo pelas estratégias de combate à mão-de-obra forçada. 9.lo
Fazendas que se utilizam do trabalho forçado são comuns no Pará
Cento e dezessete anos depois de a princesa Isabel assinar a abolição da escravatura, 25 mil pessoas ainda trabalham, no Brasil, em condições análogas às da escravidão, segundo o relatório Uma aliança global contra o trabalho forçado, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O documento, lançado simultaneamente em Brasília e Genebra, é o primeiro levantamento quantitativo realizado pela entidade, que utilizou dados do Ministério do Trabalho e Emprego e de organizações não-governamentais. Apesar do número expressivo de cativos, o Brasil foi citado como exemplo pelas estratégias de combate à mão-de-obra forçada. Há dois anos, as ações de erradicação intensificaram-se, com a criação de um plano nacional e da "lista suja", onde são divulgados os nomes dos proprietários de terras onde há trabalhadores escravos.
"No período de 2003 a 2004, foram resgatados mais trabalhadores que todos os anos anteriores", comemora Patrícia Audi, coordenadora do projeto de Combate ao Trabalho Escravo da OIT. O Brasil é referência mundial pelas ações implantadas e, ao lado do Paquistão, foi o primeiro país a lançar um plano de erradicação. No documento da OIT, além do destaque às estratégias de enfrentamento do problema, é feita uma reflexão sobre os motivos que levam trabalhadores à senzala em pleno século 21.
"Falta muito para alcançar um verdadeiro consenso sobre as causas estruturais do trabalho forçado", diz o relatório, que aponta a política agrária e as desigualdades sociais como possíveis motivos. Para o ministro do Trabalho e Emprego, Ricardo Berzoini, são exatamente essas as raízes da exploração da mão-de-obra forçada no Brasil. Ele admite que é preciso intensificar os programas sociais para combater esse flagelo. "Geração de emprego é fundamental, além de outras experiências produtivas que permitam aos trabalhadores produzir, ter renda, sem se submeter à exploração", afirma.
Miséria Um estudo realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) revela o perfil dos aliciados e confirma que, hoje, o que prende trabalhadores rurais aos grilhões é a miséria. Eles são camponeses que tentam sobreviver com agricultura familiar, pertencem ao sexo masculino, têm de 18 a 40 anos e 80% são analfabetos. Segundo a OIT, os estados que mais exportam mão-de-obra escrava são Piauí e Maranhão, que estão entre as cinco unidades da federação com Índices de Desenvolvimento Humano mais baixos do país - 0,673 e 0,647, respectivamente. No desolamento social em que se encontram, tornam-se isca fácil para os "gatos", intermediários do negócio.
O modus operandi é o mesmo em todo o Brasil. "Gatos" procuram por trabalhadores em locais de grande vulnerabilidade. Prometem serviço, muitas vezes até carteira assinada. Fazem adiantamentos de R$ 50 a R$ 100 para manter a família assistida enquanto o agricultor estiver fora. É quando tem início o ciclo da escravidão. Sem saber, ele está assumindo sua primeira dívida. "Chegando à fazenda, todo equipamento de trabalho, como foice, chapéu e botas, é anotado no caderno. O trabalhador só pode ir embora se pagar a dívida, mas ele nunca vai ter saldo porque também são contabilizadas as despesas com transporte, alojamento e alimentação. Se insistir em deixar o lugar, ele pode ser morto", explica Marcelo Campos, coordenador do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego. Para não reconhecer o caminho, geralmente os agricultores recrutados pelos gatos são embriagados antes da viagem.
Ainda que consigam fugir, estão a milhares de quilômetros de casa. Os estados que mais recrutam escravos são Pará e Mato Grosso, locais de expansão da fronteira agrícola. Por trás do crime estão fazendeiros graúdos, que abastecem o mercado interno e exportam para Estados Unidos, Europa e Ásia. Uma pesquisa realizada pela OIT, juntamente com a Ong Repórter Brasil a partir da "lista suja" do Ministério do Trabalho e Emprego, onde constam os nomes das propriedades que fizeram uso do trabalho forçado, revelou a cadeia econômica.
Entre as 163 fazendas citadas - dois proprietários conseguiram retirar, na Justiça, seus nomes da lista -, 80% dedicam-se à agricultura e 17% à pecuária. São grandes fazendas do agronegócio, como as produtoras de soja Tupy S/A e Fazenda Vó Gercy (ambas no MT), que vendem para Europa e Ásia.
Promessas No dia 24 fevereiro de 2003, os piauienses Francisco de Souza Moraes, Antônio Francisco da Silva, Ivan Rodrigues de Sousa e José do Egito Santos procuraram a CPT de Marabá (PA) para denunciar a fazenda Monte Castelo, a 58 quilômetros de Sapucaia, no sul do Pará. Os quatro saíram do Piauí em busca de emprego. Eles estavam em um ponto de ônibus em Sapucaia quando foram abordados por um homem que perguntou se queriam emprego. Ofereceu trabalho na fazenda, onde eles deveriam limpar o campo de juquira (mato selvagem) a R$ 50 o alqueire.
Quando chegaram a Monte Castelo, foram alojados em um barracão que servia de depósito de lixo. Trabalhavam das 6h às 18h, todos os dias da semana. Segundo os trabalhadores, eles eram obrigados a comprar mantimentos na própria fazenda, pois o gerente negava o fornecimento de comida. Quando já não tinham como pagar, receberam carne, arroz e feijão para continuar o serviço. Muitas vezes passaram fome.
No momento que quiseram acertar as contas, o gerente pagou R$ 70 a cada um, mas os mandou de volta ao serviço. Decidiram ir embora, mas os seguranças da fazenda, armados, os impediram. Os quatro conseguiram sair escondidos numa caminhonete que transportava leite. Quando chegaram a Sapucaia, pegaram caronta até Marabá, onde procuraram a Polícia Federal. Encaminhados pela PF à CPT, prestaram depoimento, afirmando, porém, que não sabiam o nome do fazendeiro e nem onde ele morava. Analfabetos, assinaram o depoimento com o polegar.
No período de 2003 a 2004, foram resgatados mais trabalhadores que todos os anos anteriores
Patrícia Audi, coordenadora do projeto de Combate ao Trabalho Escravo da OIT
O número 163 Fazendas são citadas pelo Ministério do Trabalho como recrutadoras de mão-de-obra escrava - 80% dedicam-se à agricultura e 17% à pecuária. Flagelo no Maranhão e Piauí