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Vai Ottomar, no cuscuz!

Humilhado, Ottomar Pinto ficou com o quinto lugar que dava direito a um prêmio de consolação: uma canjiquinha de papa rala e um copo de aluá. Traumatizado, carregou consigo a frase da Marieta: "Vai, Ottomar, no cuscuz" e os comentários triunfantes de Ubaldino: "quem nasceu pinto, nunca chega a galo".


* José Ribamar Bessa


No sertão pernambucano, às margens do rio São Francisco, fica Petrolina. Foi lá que nasceu, em janeiro de 1931, o então inocente Ottomar de Souza Pinto. Seu único lazer foi, durante muitos anos, a festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora Rainha dos Anjos, realizada no mês de agosto. Havia missas, novenas, procissão, rifas, muito foguetório e, sobretudo, a quermesse na praça da Matriz. Lá, ele paquerava a Marieta, uma bunduda apelidada de Saubinha, dedicando-lhe músicas e enviando-lhe 'telegramas no ar' pelo Serviço de Altofalantes 'A Voz de Petrolina'. Participava, também, do Concurso do Cuscuz - uma corrida de saco, cujo prêmio era um cuscuz e duas garrafas de jinjibirra.



A última vez que Ottomar Pinto concorreu ao cuscuz foi em 1943, quando tinha 12 anos. Durante a corrida de saco, Marieta, na torcida, se esgoelava gritando: "Vai, Ottomar, no cuscuz". Mas foi Ubaldino, um baiano de Juazeiro, quem ganhou o cuscuz, a jinjibirra e, de quebra, a Marieta da calça-preta, com quem se casou. Humilhado, Ottomar Pinto ficou com o quinto lugar que dava direito a um prêmio de consolação: uma canjiquinha de papa rala, conhecida como "mingau das almas" e um copo de aluá. Traumatizado, carregou consigo pelo resto da vida a frase da Marieta: "Vai, Ottomar, no cuscuz" e os comentários triunfantes de Ubaldino: "quem nasceu pinto, nunca chega a galo".



O brigadeiro Pinto



Desencantado, Ottomar Pinto atravessou o rio São Francisco pela ponte presidente Dutra, que liga Petrolina a Juazeiro da Bahia. Entrou na Aeronáutica, cobriu-se de chocolate e leite condensado, tornando-se brigadeiro. Deixou de ser inocente. Na época da ditadura militar, foi nomeado governador biônico do então Território Federal de Roraima, onde passou a cultivar ódio contra os índios, considerados por ele como "obstáculos ao progresso". Nas duas últimas eleições em que foi candidato - para prefeito de Boa Vista e para governador de Roraima - ouviu os gritos desesperados vindos da sua longínqua infância: "Vai, Ottomar, no cuscuz". Foi. Não adiantou: levou ferro e canjiquinha rala.

Apesar de derrotado, o brigadeiro Pinto se tornou governador, assumindo a metade do mandato de Flamarion Portela, cassado meses atrás por corrupção. Consultamos o famoso psiquiatra Rogelio Casado, autor do clássico 'Reflexões sobre traumas de infância e a neocatarse'. Ele foi conclusivo: "O brigadeiro Pinto crê que governa as sobras e os sobejos do adversário. É como se ele estivesse casando com uma Marieta abagulhada, abandonada por Ubaldino, cheia de filhos e de varizes. Numa perspectiva reichiana, trata-se de desvio da libido. O maior poder está na libido dessublimada, como disse o psicanalista alemão William Reich, antes de morrer, em 1957, numa penitenciária norte-americana".



Esse diagnóstico explica porque o brigadeiro Pinto, rebelando-se contra a homologação das terras indígenas, decretou luto oficial por sete dias em Roraima, ameaçou cortar verbas para as escolas indígenas e os postos de saúde, negou à Polícia Federal a cessão de 100 policiais de choque da PM e apoiou os arrozeiros invasores de terras indígenas, incluindo o prefeito de Paracaima, Paulo Quartiero, suspeito de ter articulado o seqüestro de quatro policiais. Essas medidas do governador estão estimulando o ódio de setores da população roraimense contra os índios e contra quem os apóia, como é o caso dos professores.



Vários leitores escreveram para essa coluna, denunciando o terror promovido contra professores da Universidade Federal de Roraima, que trabalham no Núcleo de Educação Superior Indígena Insikirán e apóiam a reivindicação dos índios. Por causa disso, as rádios locais desencadearam uma campanha histérica contra a homologação. Em conseqüência, o professor Fábio Carvalho, coordenador do Núcleo, sofreu um atentado, com o lançamento de um coquetel molotov em sua casa, incendiando o carro estacionado na garagem e atemorizando suas duas filhas e a esposa grávida de oito meses. Depois, recebeu telefonema ameaçador dando prazo de três dias para que abandone a cidade.



A razão de Marieta



O brigadeiro Pinto, por sua conduta subversiva, será responsabilizado por qualquer violência cometida contra índios ou professores. Ele se declara abertamente contrário à Constituição e às leis do país, manifestando disposição de sabotar as medidas do presidente república. Tenta rachar o movimento indígena e manipular a opinião pública com apoio de alguns índios de uma tal SODIUR - Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima. - Os índios estão indignados. Não aceitam a homologação em terras contínuas - declarou o brigadeiro Pinto. Ele pensa que a gente é leso. Quem acredita num grupo de escravos que diga: somos a favor da escravidão?



A Folha de São Paulo perguntou: "Há rádios de Roraima pregando que o decreto do presidente Lula atende a interesses dos Estados Unidos. Como o sr.vê isso?". O brigadeiro Pinto respondeu: "O presidente Lula disse na minha frente e da bancada de Roraima que toda vez que ia ao exterior recebia pressões e reclamações favoráveis à homologação da reserva. Disse que tinha pressa em atender a essas demandas".



O brigadeiro Pinto é mesmo um espertalhão. Patriota de última hora, aproveita um sentimento nobre do brasileiro, de amor à pátria, para justificar o roubo que os arrozeiros querem fazer das terras indígenas. Ele sabe muito bem que no exterior, quem defende os índios não é o Governo Bush ou o Tony Blair. Ao contrário, os aliados dos índios lá fora são justamente aqueles que fazem oposição ao Bush, ao Blair, à guerra, às agressões ao meio ambiente e lutam em defesa dos direitos humanos. Quem pressiona o Lula, lá fora, pelos direitos indígenas, são os gringos que se opõe ao Bush. Ou seja, são os nossos cupinchas da sociedade civil.



A ellite política de Roraima, mergulhada em corrupção, está quase toda podre. As primeiras medidas de Ottomar como governador foi nomear a parentada toda para cargos nas secretarias estaduais: mulher, filhas, genros, sobrinhos e papagaios. E agora, quer nos fazer acreditar que os índios são um problema para Roraima, e um perigo para o Brasil, quando na verdade perigo para o Brasil são os gafanhotos e a oligarquia regional responsável pela corrupção. Sinceramente, acho que a Marieta tem razão: "Vai, Ottomar, no cuscuz".

* Autor da coluna Taquiprati, do Diário do Amazonas

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