00:00:00

Fome na fazenda-modelo de Lula

No discurso em que transferiu a posse dos 19.700 hectares da Fazenda Maísa, em 20 de dezembro de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu fazer dela seu modelo de reforma agrária. Dezesseis meses depois, os conflitos passaram para o lado de dentro da cerca, onde pessoas disputam comida com animais.


Pedro Motta Gueiros* MOSSORÓ, RN Na entrada do assentamento Eldorado do Carajás II, a revoada de borboletas amarelas sobre a lavoura verde pinta uma ilusória bandeira da prosperidade. No discurso em que transferiu a posse dos 19.700 hectares da Fazenda Maísa, em 20 de dezembro de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu fazer dela seu modelo de reforma agrária. Dezesseis meses depois, os conflitos passaram para o lado de dentro da cerca, onde pessoas disputam comida com animais. Nos barracos cobertos por plástico preto, o calor e a realidade tornam-se infernais sob o sol de Mossoró, a segunda cidade do Rio Grande do Norte, a cerca de 277 quilômetros de Natal. Para as 450 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a chegada das borboletas no período das chuvas é ameaçadora. Antes de criar asas, as lagartas destroem a plantação de milho e feijão. Os animais ficam sem ração. Para evitar que as galinhas comam o próprio ovo, Maria Belo da Silva, de 34 anos, queimou-lhe os bicos. Ela vive com o marido e o cunhado, todos desempregados, e os dois filhos: - Está tudo parado. Só temos a lavoura, e a lagarta está comendo o nosso feijão. Aqui só se fala em ovo. Mais do que a falta de dentes, o sorriso constante de Maria revela a face da resistência. Enquanto a chuva não entra pelas paredes vazadas, a casa está impecavelmente arrumada. A cama está coberta por uma colcha azul, engomada e com babados: - Agradeço por ser assim, se fosse triste já tinha morrido. Casas de barro, papelão e madeira Sobre a terra que ganharam em dezembro de 2003, os agricultores imaginavam erguer casas e uma cooperativa produtiva. Ainda esperam pelos créditos para concretizar o sonho. Hoje vivem em casas de barro, madeira e papelão, que não resistem à chuva nem ao calor. Com temperatura acima de 40 graus, literalmente pegam fogo. A primeira impressão para quem chega é mais amena. Crianças andam de bicicleta e jogam bola ao lado de um trator e de uma parabólica. Mas os benefícios não são para todos. Com feridas na pele, diarréia e verminose, os moradores reclamam da qualidade da água. Foram abertos 20 poços profundos. O esgoto é despejado em buracos dentro ou perto das casas. - O jeito é fazer as necessidades dentro da sacola e depois enterrar - conta Francisca Garcia, 38 anos. Na casa do tratorista desempregado Paulo Ribeiro da Costa, 39 anos, o banheiro é um quadrado com o piso coberto por pedras em desnível. - Escorre tudo para baixo da terra - diz. Na superfície, as crianças brincam. Algumas sem roupa, como o menino Jonatas, de 4 anos. Como um índio, vive nu e não corta os cabelos desde que sobreviveu a uma crise convulsiva quando era bebê. - Foi promessa, se ficasse bom não cortaria mais o cabelo dele - diz a mãe Elizangela Pereira Sales, 23 anos. - Para mostrar que não é menina, quer andar pelado. Todos repartem a mesma comida: um cilindro de mortadela, que Elizangela chama de extintor. Fica pendurado no teto, com uma rede na ponta, já aberta, para protegê-lo das moscas. Também há arroz e feijão e água mineral, só para as crianças, porque a de poço estava dando diarréia: - Fartura aqui é costela. A fartura é só no sábado, dia de pagamento do marido, que ganha R$ 270 como agricultor fora do assentamento. Quando passa o vendedor de sacolé, Elizangela deixa Jonatas pegar um, "mas de goiaba porque tem vitamina C", e fica devendo R$ 0,20. A vida é menos saborosa para os desempregados, como Paulo Ribeiro e a mulher Keila Carina, 23 anos. - Teve almoço hoje porque minha mãe trouxe. Ontem não teve. A vizinha deu um coco e inventei um cuscuz - conta ela, mãe de quatro filhos. Francisco Silva, 45 anos, ainda guarda os grampos da cerca que arrebentou na invasão. Lembrar-se da cobra que matou para comer torna-se um divertimento. Apesar da parabólica, não há aparelhos de TV nem energia elétrica. - Nem sei mais o que é tomar uma água gelada, de noite é escuridão total. Nossa diversão é ver o grilo cantar - disse o pioneiro, ainda convicto. - Temos que lutar até o fim. A unidade existe mais no discurso. O Eldorado II está dividido em dois assentamentos. O MST ficou com a área do Pomar. Das 580 famílias assentadas, 130 desistiram. No povoado de Vila Nova, gerido pelo sindicato da lavoura, há cerca de 350 famílias. - Nossa área está demarcada, mas não sabemos qual é a medida exata - disse o líder do assentamento do MST, Paulo Costa, 35 anos, quatro filhos. No Pomar, restam cultivos de acerola, goiaba e caju da falida Maísa, desapropriada pelo Incra por R$ 9 milhões. A esperança também resiste. Todos os dias, Wilma Martins, 20 anos, mãe de um filho, prende os cabelos, passa batom e põe brincos, como quem tenta enfeitar a realidade. - É bom poder andar descalço e sentir a terra fria. A ciência evolui e o futuro vai ser bem melhor. * Enviado especial

Últimas Postagens