- 19 de novembro de 2024
PONTOS LEVANTADOS PELA COMISSÃO DE PERITOS DA JUSTIÇA FEDERAL SOBRE A DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL Muito tem sido dito a respeito do processo de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Têm sido utilizados argumentos pró e contra a demarcação pretendida pela FUNAI. Têm havido discussões calorosas envolvendo todo tipo de interlocutor, com variados interesses, confessados ou não.Ora são utilizados argumentos técnicos sofisticados, ora são explicitadas posições carregadas apenas de convicções e pré-concepções, inclusive ideológicas. Existem, entretanto, inúmeros pontos essenciais do processo ainda mal resolvidos. Sem entrar no mérito da questão, isto é, não importando o lado que estaria com a razão, forçoso é reconhecer que a Comissão de Peritos da Justiça Federal apontou muitas irregularidades graves no processo comandado pela FUNAI e que ainda continuam sem respostas. A leitura cuidadosa do relatório da referida Comissão não deixa dúvidas: Ou a Comissão é irresponsável e criminosa, ao inventar aqueles pontos, ou a FUNAI, deliberadamente, está a enganar o povo de Roraima e do Brasil. Alguém, a Comissão ou autoridades da FUNAI, tem que ser responsabilizado. A FUNAI tem induzido o Governo Federal a grave erro, ao basear suas decisões políticas em informações falaciosas. Estão sendo cuidadosamente enganados Suas Excelências, o Ministro de Justiça e o Presidente da República, ao serem induzidos a editar Decreto de Homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com base na Portaria Ministerial n° 820/98. Sempre que questionada quanto ao embasamento da Portaria 820/98, a Funai argumenta que: "...os trabalhos realizados no âmbito administrativo do Grupo de Trabalho instituído pela FUNAI, envolvendo além de quadros especializados da FUNAI e de outros órgãos da administração federal, técnicos do governo estadual de Roraima e pesquisadores de universidades públicas, seguiram à risca todas as normas administrativas e jurídicas que tratam do procedimento de identificação e demarcação de áreas indígenas." O relatório do grupo técnico criado por Portaria da FUNAI é a origem que embasa e justifica todas as decisões do Governo Federal. A partir desse relatório, o parecer 036 da FUNAI aprovando-o, embasa o Despacho 009/93 que serve de suporte técnico à decisão contida na Portaria Ministerial 820/98, que daria origem ao Decreto de Homologação da Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O parecer 036 da FUNAI inicia com a afirmação: "O Presidente da FUNAI criou um grupo técnico interinstitucional, com a finalidade de identificar e realizar o levantamento fundiário da ÁREA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. O grupo de técnico foi constituído por: ... 3. Funcionários da SEIMAJUS (Secretaria estadual de Meio Ambiente, Interior e Justiça) do Estado de Roraima ROBÉRIO BEZERRA DE ARAÚJO (Secretário); ANTÔNIO HUMBERTO BEZERRA DE MATOS; LUIS ALFREDO MENDES DE SOUZA; GERÔNCIO GOMES TEIXEIRA; DORVALCOSTA JÚNIOR; VAGNER AMORIM DE SOUZA, e; MAILDES FABRÍCIO LEMOS (técnicos agrícolas). 4. Pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) PAULO JOSÉ BRANDO SANTILLI (antropólogo), e; JOSÉ JULIANO CARVALHO (economista). 5. Membros do CIMI (Conselho Indígena Missionário) FELISBERTO ASSUNÇÃO DAMACENO (advogado). 6. Membros da Diocese de Roraima ANA PAULA SOUTO MAIOR (advogada) 7. Lideranças Indígenas indicadas pelo CIR (Conselho Indígena de Roraima) ..." Sem dúvidas, compete à União a decisão administrativa e política sobre a interpretação do texto constitucional que prevê a proteção ao interesse das comunidades indígenas e a conseqüente demarcação de suas terras. Tudo gira em torno do resultado dos trabalhos desse grupo técnico interinstitucional, que teria a participação de instituições que possuem interesses no caso e da academia. De acordo com o Decreto n° 22, de 04.02.91, em vigor à época da apresentação do Relatório: "concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada". Como o Relatório foi assinado apenas pela antropóloga Maria Guiomar de Melo, representante da FUNAI, é de se supor que ela estivesse representando todo o grupo dos 27 técnicos das várias instituições envolvidas, para atender ao disposto no Decreto n° 22/91. Na verdade, ela não estava representando o grupo, pois a grande maioria dos supostos "técnicos" nomeados pela Portaria n° 1.141 não tinha nem mesmo conhecimento do Relatório circunstanciado que eles teriam que apresentar ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada. Fato esse suficiente para tornar a Portaria 820/98 nula de pleno direito. Além do fato do Relatório não representar o pensamento dos membros do grupo técnico interinstitucional, há que se considerar a pouca representatividade desse grupo constituído pela FUNAI. Em primeiro lugar, o grupo de trabalho interinstitucional contem dez (10) índios, todos indicados pelo CIR. Compor um grupo de trabalho com a participação indígena indicada apenas pelo CIR é, no mínimo, parcial e injusto, por não conter representação das outras instituições e dos outros índios não favoráveis à demarcação, de forma contínua. Pelo menos no que diz respeito à representação indígena, a escolha dos membros da comissão foi tendenciosa ao favorecer apenas um dos lados da discussão. Em segundo lugar, sendo o Estado Brasileiro laico, não se vê razão para que a Igreja Católica possua representante algum em um grupo técnico interinstitucional criado por um órgão público federal. Além disso, é também questionável a participação dessa congregação religiosa com dois representantes, um indicado pelo CIMI (sem contar com o economista da USP, também indicado pelo CIMI) e outro pela Diocese de Roraima, enquanto que os outros grupos religiosos, muitos dos quais contrários à demarcação de forma contínua, que também atuam nessa área prestando serviços relevantes aos povos indígenas, não possuem representação alguma nesse grupo técnico interinstitucional. Novamente, houve parcialidade no processo de escolha dos representantes das diferentes instituições para compor o grupo interinstitucional de trabalho encarregado de proceder à identificação e à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em terceiro lugar, no que diz respeito à participação do Governo do Estado de Roraima, o Sr. Robério Bezerra de Araújo, acompanhado por seis técnicos agrícolas, foram designados, pela Portaria n° 1.141, como representantes técnicos do Estado de Roraima. Entretanto, o Governador havia designado, por Decreto, "os senhores Luiz Aimberê Soares de Freitas, Robério Bezerra de Araújo e José Augusto Soares", como seus representantes. A FUNAI tomou ciência desse Decreto por meio de ofício do então Chefe do Gabinete Civil do Governo do Estado de Roraima, senhor Luiz Aimberê, porém desconsiderou tais indicações. É incompreensível como o executivo estadual daquela época tenha permanecido em silêncio frente à situação embaraçosa criada pela FUNAI, ao não respeitar a indicação dos representantes do Governo. Mais agravante ainda, o Sr. Antônio Humberto Bezerra de Matos (um dos "técnicos agrícolas", que seria representante do Governo do Estado) não é técnico agrícola e não tomou conhecimento de sua nomeação pela Portaria n° 1.141, e nunca participou de atividade alguma relativa à demarcação em questão. Na verdade, nunca esteve na área Raposa Serra do Sol. O Sr. Gerôncio Gomes Teixeira (outro "técnico agrícola" componente do GT) não é técnico agrícola e sim, Auxiliar Operacional Agropecuária e esteve na área Raposa/Serra do Sol conduzido pelo motorista Maíldes e acompanhando um "doutor de Brasília". Seu trabalho foi única e exclusivamente "medir alguns currais e contar algumas árvores" a mando do "doutor", em fazendas da região. Ficou surpreso ao saber, em 2004, que fazia parte de um Grupo Técnico Interinstitucional de tanta relevância para o Estado de Roraima e que representaria o Governo do Estado, nessa Comissão. Os Senhores Vagner Amorim de Souza e Maíldes Fabrício Lemos (também supostos "técnicos agrícolas" pertencentes ao GT) não são técnicos agrícolas e, sim, motoristas, e, também, não sabiam que faziam parte do Grupo Técnico. A única atividade de ambos no processo de demarcação foi relativa à responsabilidade de conduzir algumas pessoas à área pretendida. Em resumo, dos sete ditos representantes do Governo do Estado, apenas um tinha conhecimento de sua inclusão na portaria. Os demais foram usados para dar aparência de legalidade e representatividade a um ato que pode vir a ser lesivo aos interesses do Estado de Roraima e do País. Assim, a representação do Estado de Roraima no Grupo Técnico ficou reduzida ao Secretário Robério, apesar de, explicitamente, o Governador ter designado três representantes e da portaria da FUNAI apresentar sete representantes do Governo do Estado. Ademais, de acordo com a ata da Sessão da Assembléia Legislativa, em 09.06.93 (Anexo 08), o então Secretário Estadual do Meio Ambiente, Interior e Justiça, Senhor Robério Bezerra de Araújo, afirmou: "... Reiteradas vezes ligamos para a FUNAI, em Boa Vista, e tivemos a oportunidade de falar com o Senhor GLÊNIO, que aqui se encontra, solicitando o resultado do relatório do levantamento fundiário... Tentamos ligar, ligamos para Brasília, e a Senhora GUIOMAR nunca fora encontrada. (...) infelizmente nós não podíamos dar qualquer informação, qualquer parecer, uma vez que nós, como membros deste grupo técnico, nomeados por Brasília, não tivemos acesso ao relatório em momento algum, e cobramos isso da FUNAI em Boa Vista e em Brasília, porém não nos foi dado essa oportunidade. Volto a repetir, a partir do momento em que foi publicado o relatório final, ..., tivemos uma surpresa desagradável, porque em momento algum foi dado a oportunidade de dar qualquer parecer sobre essa matéria (...) Eu não tive acesso a esse laudo (...) Não fomos consultados, não houve ata de reunião nenhuma. Eu não assinei documento nenhum, tanto como nenhum outro membro, eu acredito que tenha assinado. Então, realmente, para mim, foi um trabalho de má fé feito pela FUNAI" Em quarto lugar, deve ser destacado que a grande vantagem dessa portaria seria o fato de ser "interinstitucional", com representantes das partes interessadas na demarcação, além de representantes da Academia (no caso, a incontestável USP), porém, a escolha do representante da academia, foi feita de uma forma comprometedora. Em 20.07.92, a Diretora Interina de Assuntos Fundiários da FUNAI, por meio do ofício nº 143, comunica ao Professor José Juliano Carvalho, do Departamento de Economia da USP, que a FUNAI está organizando um Grupo de Trabalho com o objetivo de identificar a Área Indígena Raposa Serra do Sol, sendo "...necessário a participação de um especialista da área econômica, que possa definir a importância da região para a economia do Estado de Roraima. O CIMI indicou V.Sa., enumerando suas qualidades profissionais, que seria a pessoa ideal para realizar o trabalho..., e aproveitamos a oportunidade para convidá-lo a compor a equipe". O Professor José Juliano Carvalho apareceu na portaria nº 1.141 como pesquisador da USP (como de fato o é) e não como representante do CIMI (pessoa ideal para realizar o trabalho, do ponto de vista do CIMI). Em quinto lugar, o Professor José Juliano Carvalho nunca esteve no Estado de Roraima, não participou dos trabalhos do GT (ao qual pertencia) em nenhuma de suas fases, nem mesmo tinha conhecimento de que faria parte de um Grupo de Trabalho Interinstitucional. Esses cinco pontos levantados explicam a ausência da assinatura dos 26 outros membros do grupo interinstitucional criado pela FUNAI, em conformidade com a legislação vigente à época, repetindo: "concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada". Um sexto ponto que demonstra a pouca, ou nenhuma, representatividade do grupo interinstitucional criado pela FUNAI diz respeito aos Municípios à época envolvidos, Boa Vista e Normandia, não terem participado nem sido convidados a participar do grupo técnico. Em sétimo lugar, cabe enfatizar que os produtores agropecuários, os comerciantes estabelecidos nas localidades, os garimpeiros, e os demais atores não foram sequer considerados. Sobre o suposto relatório do grupo técnico interinstitucional, a Comissão de Peritos apresentou os seguintes comentários: 1. Foi assinado única e exclusivamente por Maria Guiomar de Melo; 2. Não representava a opinião do Grupo Interinstitucional que era composto por 27 pessoas; 3. Era uma simples coletânea de cinco peças completamente independentes e sem conexão entre si; 4. O relatório antropológico é uma reprodução simplificada de documento análogo produzido pela mesma antropóloga, oito anos antes, que concluía pela demarcação em "ilhas"; 5. A análise da situação fundiária da área indígena Raposa Serra do Sol foi feita por ONG (CIR) que representa parte dos índios da região; 6. A Proposta de Demarcação da Área Indígena propriamente dita contem apenas três páginas, de forma parcial e sem embasamento algum; 7. Essa sumária "Proposta de Demarcação da Área Indígena" é baseada em argumentos falhos, tendenciosos, subjetivos e preconceituosos, além de serem apresentados numa linguagem não apropriada e repleta de erros ortográficos e de concordância, demonstrando total descaso com a importância do trabalho que poderá representar mudanças substanciais para o País e na vida da população envolvida; 8. O Parecer Jurídico do Processo foi elaborado por organização da Igreja Católica (CIMI), apesar do Governo Federal dispor de órgãos competentes para tal; 9. Não contem análise alguma da qual se possa tirar conclusões sobre importantes tópicos, tais como reflexos sobre os interesses da Segurança e da Defesa Nacionais, ou sobre a importância da região para a economia do Estado; 10. Engloba a área do Parque Nacional Monte de Roraima, criado pelo Decreto 97.887, de 28.07.89. A FUNAI conseguiu apresentar uma quantidade extraordinária de irregularidades, num único processo de demarcação. Talvez tenha sido movida pela vontade, fora do comum, de servir à nobre causa de defesa dos interesses das comunidades indígenas, em comum acordo com teses "politicamente corretas" defendidas internacionalmente por organismos governamentais e não governamentais. É muito difícil justificar-se como pode ser apresentado um conjunto tão amplo de vícios e irregularidades. Mesmo que algum item, em particular, não fosse tão devastador, a própria amplitude da coleção (ainda que fosse de pequenos erros) estaria a demonstrar a forma imprópria do tratamento dado pela FUNAI à questão. O fim pode até ser nobre e justo, porém é de se perguntar: E OS FINS JUSTIFICAM OS MEIOS?