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DOMINUS VOS BISCUM - Crônica do Aroldo Pinheiro
Sou do tempo em que nosso país era uma espécie de teocracia; a igreja católica apitava em todos os assuntos de governo. Essa quantidade absurda de feriados católicos no Brasil, é reflexo daqueles tempos.

Sou do tempo em que nosso país era uma espécie de teocracia; a igreja católica apitava em todos os assuntos de governo. Essa quantidade absurda de feriados católicos no Brasil, é reflexo daqueles tempos. Hoje, 8 de dezembro, é feriado em nosso Estado. Faça-se uma enquete e pouquíssimas pessoas sabem dizer o porquê do dia de folga; no máximo ouvir-se-á: "Ah, só sei que é por causa duma Nossa Senhora...; num sei qual." Sou do tempo em que os discursos em solenidades oficiais começavam por: "Excelentíssimo senhor Governador, excelentíssimo senhor Prefeito, excelentíssimas autoridades militares, civis e eclesiásticas aqui presentes..." ... A cidade recebeu um novo bispo: careca, cavanhaque branco, velho, sizudo, mal-humorado e cheio de pompa. Por onde andava fazia-se acompanhar de um padreco que carregava sua valise com missais, breviários e livros de cânticos, protegendo-o do sol com circunspecta sombrinha bispal. Esse ministro de Deus resolveu revolucionar sua paróquia: descaracterizou a antiga Igreja Matriz da cidade (numa grande e irreparável cagada!) e institucionalizou uma espécie de congregação entre os coroinhas; tudo em nome de Deus e da modernização. Ao longo dos tempos, o monsenhor mostrou a que veio: promovia, na prelazia, orgias regadas a vinho, hóstias e pãezinhos fabricados pelas freiras. Esse representante de Deus dizia aos garotos que balançavam sinetas e sacudiam turíbulos nos cultos que aquelas reuniões eram o início do caminho para o céu. Dom Bispo, naturalmente, naqueles preâmbulos, escolhia alguém para saciar-lhe as coisas da carne. Robertinho, quatorze anos, garoto bonito, simpático, olhos verdes, era sua ovelha preferida naquele rebanho. Às vezes, nas suas taras, Vossa Reverendíssima, nem bem terminava de pronunciar o "dominus vos biscum" e Robertinho já estava com o "espiritus tun" aprumado. Num dia 8 de dezembro, lá pelos anos sessenta, haveria, como sempre, uma procissão que culminaria com missa campal na praça da igreja de Nossa Senhora do Carmo (a festa era em homenagem a Nossa Senhora da Conceição, mas realizada na casa de sua parenta: "do Carmo"). O bispo e seus coroinhas, naquela tarde, envolveram-se de tal forma com a esculhambação, que quase perderam a comemoração pelo dia da Santa. Chegaram, apressadamente, em fila indiana: o semi-cardeal à frente, o padreco protegendo-o das intempéries, Robertinho balançando o turíbulo, Claudinho carregando a sineta, e Josafá com a Bíblia Sagrada; quando em cima do palanque, o povo, escandalizado, notou e comentou que a batina do bispo estava abotoada de maneira muito confusa - os botões não coincidiam com as casas - deixando à vista suas meias: do lado direito, branca e, do outro, cor de vinho. A curta bata de coroinha usada por Robertinho deixava à mostra exatamente o inverso: meia cor de vinho do lado direito e, do outro, meia branca. O bispo morreu; Robertinho, viúvo bispal, virou diácono e dedica-se a levar adiante, integralmente, as patifarias do seu ídolo e mentor; Josafá, pai de família, tem verdadeiro pavor do apelido que carrega até hoje: Irmão-leigo; Claudinho danou a queimar a rosca; adotou o nome de Samantha e faz ponto, todas as noites, na frente da Catedral Cristo Redentor. (Em tempo: nunca fui coroinha nem nunca fui chegado às coisas da igreja; só conheci esse bispo "de ouvir dizer". Graças a Deus!) e-mail: [email protected]
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