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Crônica do Aroldo

Uma manga rosa mostra que liberdade não tem idade


Liberdade não tem idade

Ela surgiu de repente. Do nada. Idade? Não posso afirmar. Mais de 60? Menos de 70? Por aí... Franzina, baixinha, não media mais que um metro e meio. Na mão direita, pesada sacola de feira provocava curvatura do corpo para o lado esquerdo.

A imagem ainda estava em minha mente quando ela voltou. Voltou devagarzinho. Sorrateiramente, olhou prum lado, depois pro outro, encostou a sacola no pé do muro, juntou uma pedra e arremessou-a contra os diversos frutos pendurados em um galho. Eram muitas mangas, mas só uma tinha a cor rosada da maturidade.  

Apesar da pedrada certeira, nenhuma delas veio ao chão.

Calmamente, ela olhou para os lados e, concluindo que ninguém prestava atenção em suas atitudes, arremessou nova pedra contra o alvo. Errou.

Sem se dar por vencida, com um pequeno pedaço de pau, tentou derrubar a desejada manga rosa. A altura daquela coisica somada ao comprimento da vara improvisada não alcançava o fruto cobiçado.

“Não tem ninguém vendo”, pensou. À falta de algo para jogar, sacou um dos tamancos e arremessou-o contra os frutos. O projétil movimentou o galho. A galhada balançou, mas nada veio ao chão. Nem manga, nem tamanco.

Dividida entre o desejo de ajuda e a vontade de sumir, mais uma vez, ela vigiou os dois lados da rua.

Coçou a cabeça, pensou, pensou, pensou... Logo, decidida, a velhinha descalçou o outro tamanco, aproximou-se do tronco da pequena mangueira, colocou um pouco de saia entre as pernas e, com dificuldade, iniciou a escalada. Sumiu entre a folhagem. Depois de os galhos se sacudirem por alguns segundos, vieram ao chão algumas mangas e o tamanco que estivera engatado.

Cuidadosamente, ela desceu da árvore, catou os calçados e prendeu-os ao pulso esquerdo. Buscou a manga desejada, limpou-a na barra da saia e, com os dentes descascou-a. Mordeu. O sumo escorreu-lhe pelo canto da boca. Delícia. Gosto de infância. Gosto de liberdade. Sabor de vitória. Sumiu ladeira abaixo.

Acendi um cigarro e me perdi em devaneios. Subindo a ladeira, a figurinha novamente. Os passos apressados chamaram a minha atenção. Do pé do muro, a velhota recolheu a sacola que tinha esquecido. Seguiu seu caminho sem olhar pra trás. O corpo não pendia para o lado esquerdo como quando apareceu pela primeira vez, os pés descalços pisavam o chão batido. Caminhando em contato com a terra, ela festejava a liberdade reencontrada.

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