00:00:00

Erro de avaliação

Maior programa de tranferência de renda do governo federal não considera carentes pessoas que ganham R$ 3 por dia e nega ajuda para pacientes com doenças graves. Problemas criam legião de desassistidos.


Solano Nascimento
Da equipe do Correio

Breno Fortes/CB
Francisca Azevedo e a filha Daiane, deficiente mental: família vive na miséria, mas renda está acima do limite para receber o auxílio
 
Apesar da fama conquistada por iniciativas como o Bolsa Família e o Fome Zero, o maior programa social do governo em volume de recursos é o pouco conhecido: Benefício de Prestação Continuada (BPC). Direcionado à população com carência extrema, o auxílio vai consumir R$ 9 bilhões este ano, atinge 2,1 milhões de brasileiros, mas é insuficiente. Por causa da limitação de renda - o benefício só chega a idosos com mais de 65 anos e deficientes de famílias cujos integrantes recebem menos de R$ 3 por dia - e de distorções nas avaliações de tipos de deficiência, o programa ignora uma legião de miseráveis espalhados pelo país.

A ausência do auxílio aparece entre as paredes de um casebre de 40 metros quadrados em Samambaia Norte, onde a chapa de madeira de uma propaganda de telefone celular substitui na porta o vidro que não pôde ser comprado. Ali vive o casal Francisco e Francisca Azevedo e seus três filhos. A mais velha é Daiane, de 18 anos, que desde bebê sofre de uma deficiência mental mal explicada por médicos, que lhe garante um vocabulário com pouco mais de 20 palavras. Não anda nem come sem auxílio.

Os conhecidos
Como Francisco está desempregado, a renda da família se resume aos R$ 320 ganhos por Francisca com duas faxinas semanais e ao salário mínino, de R$ 350, que o filho Darlison, de 16 anos, consegue com um estágio como menor aprendiz em um banco. O dinheiro é escasso para os remédios de Daiane e insuficiente para pagar um táxi para levá-la a hospitais em suas crises freqüentes. Não dá sequer para comprar o necessário para a família comer e vestir. "Graças a Deus a gente tem muitos conhecidos, e um dá uma cesta básica, outro uma roupa usada", se consola Francisca, 35 anos.

Apesar da clara situação de carência e do problema de saúde de Daiane, a família Azevedo tenta há três anos, sem sucesso, conseguir o benefício do governo. E as perspectivas não são boas. O salário de Darlison e as faxinas de Francisca garantem aos Azevedo uma renda média por pessoa de R$ 134 mensais, e pela lei o BPC só é dado para deficientes de famílias em que cada integrante não ganhe mais de um quarto de salário mínimo, o que hoje equivale a R$ 87,50. Ou seja, qualquer família com renda para cada adulto pagar uma única passagem de ônibus por dia e cada criança consumir um único litro de leite diário já não é mais considerada pobre o suficiente para receber a ajuda do governo.

Bem focalizado
É uma pena, pois o programa destinado a idosos e deficientes é o que tem maior potencial de garantir mudança de faixa de renda, já que assegura o ganho mensal de um salário mínimo, bem superior ao de benefícios como auxílio-gás e Bolsa Família. "O BPC é o programa de transferência mais capaz de retirar as famílias da pobreza extrema e colocá-las em situação bem melhor", afirma Marcelo Medeiros, coordenador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no Centro Internacional de Pobreza da Organização das Nações Unidas (ONU). "É o programa que mais alcança os extremamente pobres, pois embora todas as transferências de renda estejam bem focalizadas, o BPC alcança mais os indigentes que o Bolsa Família." Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que metade das famílias com renda per capita de até um quarto do salário mínimo não recebem o BPC nem nenhum outro auxílio do governo.

Há mais de 10 projetos de lei no Congresso para alterar critérios desse benefício, desde os que aumentam a renda per capita de candidatos ao BPC até os que excluem alguns rendimentos familiares do cálculo do limite para concessão. O problema é que as propostas dos parlamentares tramitam há anos à espera de discussão séria e votação.

Subjetividade
Outro problema grave do BPC está na perícia que considera um deficiente apto ou não para o recebimento do benefício. Pelas normas em vigor, o auxílio é dado para pessoas com algum tipo de deficiência permanente que as torne incapazes para o trabalho ou vida independente. A dúvida é o que exatamente isso quer dizer. "Quando o conceito é ambíguo, a ambigüidade leva as pessoas para o campo subjetivo do que seja justo ou injusto, certo ou errado", diz a antropóloga Debora Diniz, que coordenou um estudo sobre o BPC recém-concluído no Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília.

Para a pesquisa, foram entrevistados 16% dos 3 mil peritos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O levantamento mostrou que só 28% dos peritos acham que o BPC deve ser dado a pessoas com insuficiência renal crônica, mal que enfraquece doentes e os obriga a enfrentarem longas e violentas sessões ligados a aparelhos de filtragem do sangue. Metade dos médicos não considera um quadro de artrose grave, que resulta em dor aguda, como argumento para conseguir o benefício. "Os peritos têm boas intenções, mas isso não resolve", afirma Debora.

Que o diga Cristiano Alexandre Batista. Aos 24 anos, faz quatro sessões diárias de diálise perioneal, tratamento que usa um cateter na cavidade abdominal para subsituir o trabalho dos rins. A doença o fez deixar há três anos o emprego com telemarketing, e ele nunca mais conseguiu outra contratação. Tentou, sem sucesso, obter o benefício. "O pessoal da perícia diz que eu tenho condições de trabalhar, mas quem dá emprego para alguém assim?", questiona Batista, que divide com o pai desempregado o salário mínimo ganho pela mãe como empregada doméstica.

O INSS se nega a falar sobre o assunto, mas Ana Lígia Gomes, diretora do Departamento de Benefícios Assistenciais do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), pasta responsável pelo programa, afirma que o governo vai baixar um decreto adotando critérios de funcionalidade para as avaliações de deficiência. Ou seja, um tipo de padrão que permita determinar se o candidato ao benefício pode ou não realizar determinadas tarefas. "Isso vai diminuir o grau de diferenciação e arbitrariedade dos peritos", diz a diretora. Faz quase um ano que a mudança na perícia vem sendo estudada pelo governo. Ana Lígia promete que o decreto estará pronto em no máximo dois meses.


Gigante desconhecido

R$ 9 bilhões serão investidos este ano no programa
2,1 milhões de pessoas recebem o benefício
37% dos atendidos pelo benefício de prestação continuada vivem no Nordeste

R$ 87,50 é o rendimento mensal per capita máximo que a família de um idoso ou deficiente pode ter para conseguir a ajuda

49% das residências brasileiras com renda per capita inferior a esse limite não recebem nenhum benefício do governo

28% dos peritos do INSS concedem o auxílio para pacientes renais crônicos

Últimas Postagens

  • 29 de outubro de 2024
"Mulher não vota em mulher"
  • 24 de outubro de 2024
Agenda Secreta