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Crônica do Aroldo - INVEJA

Uma vez, conversando com meu filho, comentei que na primeira vez que assisti à televisão eu tinha quinze anos. Ele, surpreso, perguntou: "como é, então, que os meninos da tua época se divertiam?" Que infância chata, meu Deus. Como tenho inveja desses meninos que têm video-games, dvd's, mp3's, ipod's e celulares.


Uma vez, conversando com meu filho, comentei que na primeira vez que assisti à televisão eu tinha quinze anos. Ele, surpreso, perguntou: "como é, então, que os meninos da tua época se divertiam?"

Disse-lhe que nos divertíamos mexendo com doidos de rua; levantando as saias das meninas; brechando em banheiros de escolas; brechando casais em noite de núpcias; jogando lápis no chão para, ao apanhá-los, ver as calçolas das professoras; jogando pedra em cachorros engatados; cruzando dedos pra trancar cachorros cagando; azucrinando velhos com apelidos; brincando de médico com as coleguinhas; brincando de casinha (sempre com as coleguinhas); tirando finos em bicicletas; transformando as Humber, Hercules, Raleigh ou Monark em motocicletas (com papelão batendo nos raios); descendo ladeiras em carrinhos de rolimã; brincando de paraquedista (usando sombrinhas pra pular das árvores); lambuzando-nos com mari-maris e cocos-babões; comendo azeitonas pretas pra ficar com as línguas roxas; gazetando aulas pra não fazer coisa nenhuma; brincando de manja em ingazeiras; roubando goiabas, araçás, pitombas e serigüelas (dependendo das safras e quanto mais arriscado melhor); traçando empregadinhas; furando filas de cinema; entrando em cinemas sem pagar; malhando Judas e roubando galinhas nos sábados-de-alelúia; juntando cortes de filmes pra ver Brigitte Bardot pelada; lendo livrinhos de sacanagem escritos e ilustrados por Carlos Zéfiro; roubando hóstias e vinho de igrejas; bisbilhotando terreiros de umbanda; chutando despachos de macumba; entrando em igrejas de crentes só pra sacanear; passando pimenta em tobas de tartarugas ovadas para acelerar as posturas de ovos; apostando quem mijava por mais tempo e/ou mais longe; fazendo cobras a partir de câmaras de bicicletas para assustar passantes; caçando passarinhos com visgos-de-jaca, baladeiras ou arapucas; engolindo corações de beija-flores pra ficar ponteiro; torrando corações de anus pra fazer simpatia e traçar as meninas; pregando chicletes em cabelos de meninos; dando melos em cabeças peladas; dando caçuletas em meninos orelhudos; disputando figurinhas no bafo; jogando bagaços de laranja em multidões de arraiais; bulindo com as meninas; puindo linhas de papagaios só pra vê-los pipocar; mexendo em rabos de tamanduás-bandeira; irritando cachorros brabos; pedindo bença pra padres e madres; brincando de cabra-cega, macuxilha, caí-no-poço, calmonibói, trinta-e-um-alerta, sete pecados, cemitério, bandeirinha e geral; secando pneus de bicicletas; engatando buzinas de jipes; preparando armadilhas em areais; tomando banhos de rio; brincando de mar em banzeiros de batelões; tomando porres de Biotônico Fontoura, Vermute Gancia, Vinho Raposa e Vinho Surpresa; jogando peladas com bolas de meia; tomando banhos de chuva e nadando em águas de esgotos; caçando calango; torando rabo de tiquiri só pra ver o movimento; matando sapos com parafusos quentes; estourando sapos  com sal; transformando galos convencionais em galos de pescoços pelados; curando pintinhos e galinhas goguentos através de batições em latas vazias de querosene; arrastando sapatos Vulcabrás no chão pra ver se acabavam; brincando de carniça; rabiscando paredes pintadas e limpas; montando cavalos vadios em pelo; arrastando carros-de-bois; amarrando meninos com retiranas; prendendo mangangás ou cavalos-do-cão em caixas de fósforos pra usar como radinhos de pilhas; coçando barrigas de baiacus pra transformar em bolas, chutar pra ver e ouvir o estouro; mexendo com velhas feiticeiras; brincando de lutar espadas com espadas feitas de madeira; brincando de Tarzã, Jim-das-selvas,  Kit Carson, Allan Ladd, Cavaleiro-negro e Merlin; assistindo presepadas de macacos-prego; botando espelhinhos nos sapatos pra ver os fundos das calçolas das meninas; fazendo contratos de folhinha-verde; roubando quibes e pirulitos de vendedores ambulantes; bisbilhotando salões de sinuca; passando nas ruas da zona só pra sentir medo das putas; entrando à noite em cemitério só pra mostrar que era macho; apostando carreira; pulando estrelinhas e dando cangapés; andando em pernas-de-pau; andando em saltos altos feitos com latas de leite em pó; brincando de telefone com latas de leite condensado e cordões; fazendo carrinhos com latas de leite, areia e arame; marchando no meio dos soldados em paradas de 7 de setembro; comendo manga verde com sal e pimenta; comendo limões-caiano só pra ver os dentes afrouxar; dando nica e bandando piões; jogando pinchas e  bolinhas de gude; empinando papagaios e curicas; trançando bole; mandando telegrama pro céu através das linhas dos papagaios; pulando macaca; jogando futebol de botão; brincando com ioiô; brincando de mímica; brincando de hierarquia militar; brincando de polícia e bandido; brincando de biriba; cagando em caixas de sapato e deixando na rua para ver o leso que ia juntar; dando tostão nas coxas dos  companheiros; dando chás-de-canela em meninos com pau duro; amorcegando jipes; perturbando novenas; fabricando bombas relógios com cabeças-de-nego e pontas de cigarro; perturbando vigias de praças, parques e escolas; etecétera...

Isso foi um pouco da minha infância. Que infância chata, meu Deus. Como tenho inveja desses meninos que têm video-games, dvd's, mp3's, ipod's e celulares.

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