- 29 de outubro de 2024
"V.
A triste figura agora é pálida, insólita, incrédula...
A breve historia é uma ária imprimida num totem perdido na lembrança;
O soneto de amor é um medíocre haicai de uma rima só.
Tudo tem um melancólico fim. Os personagens se fundem no tempo-espaço irreal
Avante! Os moinhos movem-se com o suspiro da bela virgem;
Toda ibérica dorme, a peleja do homem é continua - nunca finda, nem nos sonhos.
A triste figura acorda para mais um pesadelo - "a felicidade é uma tragédia".
Lá vai ele, o Cavaleiro da Triste Figura, a perambular pelas terras de Macunaíma; pedalando no seu Rocinante sob o sol escaldante de nossa bela cidade. As ruas são as mesmas de sua infância, o que ele não entende são seus nomes, impressão que se tem é que Boa Vista foi um grande campo de concentração, com soldados sem caras, sem faces, sem personalidades - apenas insígnias.
Seus moinhos de ventos foram arrancadas de sua ingênua fantasia; o que lhe deram em troca foi o sangue dos curumins mortos em maternidades, aldeias, vilas e periferias esquecidas do extremo norte. O que é lembrado até hoje, é o choro da mãe pela morte do filho naquele carnaval feliz.
O Haiti não é aqui, muito menos Madrid. O pobre rapaz agora manobra para o fim, a tese que se tem, é que nunca houve um começo. Seu corcel é composto por dois humildes aros, algumas peças de metais, e o magro corpo, parco e leve - como é leve a felicidade dos enamorados.
Avante! Avante! A doce e bela Dulcineia, o aguarda - intacta, perfeita, resignada, e quem sabe com um pouco de amor para dar-lhe.
A dantesca odisséia não tem um objetivo comum, a vida é assim: um acaso, um pouco de fé, uns grãos de arroz, feijão, farinha, um naco de carne. A caminhada segue, o suor já lhe cobre o corpo, tudo transborda de seus poros, todos os líquidos, os gases, os sólidos; logo, serão injetados pelo orifícios da frágil anatomia. A sua procura é por tudo, ou quem sabe pelo obvio. A utopia beira a poética - só os loucos sonham, os outros dormem.
O céu esta limpo, azul. Ele continua lá, trepado na submissa bicicleta; o equilíbrio forma um estranho quadro: a simbiose homem-máquina. Mas nada lhe aflige, nem a corroída Capital, com sua flagrante pobreza. Foram tantas promessas não cumpridas, tantas lágrimas derramadas, agruras, decepções; a própria existência de Roraima é uma paradoxo - não pode haver o que não existe.
A fadiga é latente, o cansaço é aparente, nosso Quixote ainda tem muito que percorrer, são infinitas ruas, avenidas, becos inteiros a serem transcorridos. O fim esta próximo, ele sabe que esta próximo. A fatalidade é iminente. Poder nenhum no mundo fará muda isso. Cada vez mais rápido, mais rápido, o seu Pegaso se transforma em vento, cruviana e velas.
É crepúsculo! O niilismo das cores e suas matizes formam um turbilhão de tons. Ele fica enaltecido, um torpor lhe alivia o espírito; é final de tarde, final de mais um dia, é o final de mais um sonho.
O pobre fidalgo tem como riqueza apenas um ideal proletário; e uma simples e dedicada Joana como mãe. A estrela não assombra mais, a boca da noite ri, ri para os amantes, os sonhadores. Ele agora esta próximo de casa, a estrada logo findará; a singela ceia estará à mesa, comerão em silencio, a prece é curta e breve. Agora deitado, terá o descanso necessário para enfrentar mais dias da eterna lida.
Eu sou apenas um velho e gordo macuxi, um Sancho Pança paradoxal, um altruísta sem fé, um comunista sem revolução, um arcaico cristão sem credo. Conheço muitos Quixotes, heróis, anti-heróis; a síntese de todas as mentiras, de todas as enganações. Vejo tudo isso sentado no barranco do secular rio, do rio com seu porto de cimento que muitas vezes me banhei. Hoje, distante, só observo um lago nas frias noites do Planalto Central. Fecho os olhos e imagino um magrelo em cima de uma magrela (com o perdão do trocadilho), desafiando os moinhos e monstros que invadiram nosso lavrado e toda a terra de Roraima.
Avante! Avante, seus sonhos são maiores que a hipocrisia de toda essa gente.
Autor: HUDSON ROMÉRIO
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