- 29 de outubro de 2024
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
A imprensa tem a obrigação de conseguir e publicar informações que são relevantes para o público. Tribunais e autoridades que cuidem melhor de sigilos protegidos pela lei: a função e os interesses da imprensa são outros. A opinião é de um especialista em ética jornalística, o professor Edward Wasserman, do departamento de jornalismo e comunicação de massa da universidade Washington and Lee, em Lexington, na Virgínia, Estado vizinho a Washington.
Com seu colega do "Miami Herald" Andres Oppenheimer escreveu "Willful Blindness" (cegueira deliberada, 2001), sobre práticas corruptas de multinacionais na América Latina, entre outros livros. Wasserman participa na semana que vem do Fórum Folha de Jornalismo, ciclo de debates que ocorre logo após a 26ª Conferência Anual da ONO (Organização de Ombudsmans de Notícias), este ano organizada com apoio da Folha de S. Paulo(leia abaixo).
Pai de quatro filhos, 57 anos, começou no jornalismo em 1972, movido pelo caso Watergate: "Achei que era uma maravilha poder melhorar o mundo e escrever ao mesmo tempo". No Fórum, Wasserman participará do debate sobre "Transparência e Qualidade Jornalística". A seguir, trechos de sua entrevista:
Folha - Quão independente e transparente um ombudsman pode realmente ser?
Edward Wasserman - Há quatro tipos de ombudsmans. O que acha que seu trabalho é apresentar os leitores à Redação; o que acha que é apresentar a Redação aos leitores. O primeiro acredita que sua função é quase a de um "serviço ao assinante": então só ouve as reclamações dos leitores. O outro faz um trabalho de explicar aos leitores porque o jornal faz o que faz, como faz -apresenta o "programa do partido".
O terceiro faz um serviço de arbitragem, que balança entre as funções dos dois primeiros. E há o quarto, que funciona como um supereditor. Faz críticas ao jornal não sob a perspectiva do público, mas sob a perspectiva do que o jornal deveria fazer. Para mim, é o tipo mais interessante, é o que escreve as colunas mais saborosas.
Folha - E deve ser jornalista?
Wasserman - Os melhores ombudsmans o são. Porque entendem e podem explicar melhor o processo de fazer uma reportagem. Deixam claro -e não justificam- para o leitor o tipo de opções que um jornalista pode ter quando está escrevendo sobre um assunto. Assim, o leitor entenderá a pressão do fechamento, as limitações de cada tipo de mídia em que o repórter está operando.
Folha - E deve vir da Redação?
Wasserman - Se a idéia é que o ombudsman seja independente, sem medo de ser sabotado depois ou de criar inimizades, é um problema. Os modelos mais interessantes da instituição do ombudsman são aqueles que trazem um jornalista de outro veículo, por um período de tempo específico, de maneira que ele saiba que não há motivos para ter medo enquanto está na função nem que exerça sua função procurando ser aprovado.
Folha - Por que, relativamente, há tão poucos ombudsmans?
Wasserman - Falta de vontade das organizações jornalísticas de vigiar suas próprias práticas. É preciso um líder visionário para insistir em ter um ombudsman, porque essa nunca vai ser uma decisão popular. Ou então uma série de desgraças e embaraços públicos, como as pelas quais passou recentemente o "New York Times", para forçar a empresa a aceitar que precisa de algum tipo de controle. Mas sempre há a desculpa do orçamento, que está sendo reduzido...
Folha - O que nos leva à pergunta sobre a crise financeira por que passa o negócio...
Wasserman - A imprensa tem de entender que a demanda por informação nunca foi tão grande. A crise não vem do fato de as pessoas subitamente decidirem que não querem mais saber o que está acontecendo no mundo ou nas suas comunidades. Elas querem.
Faço uma analogia: há 50 anos, aqui nos EUA, eram vendidos cinco vezes mais ingressos para o cinema do que em 2005, e a população era um terço da de hoje. Se Hollywood estivesse no mercado de vender ingressos, não haveria mais indústria de cinema. Mas eles descobriram que o negócio deles era vender entretenimento.
Os jornais choramingam. O que eles têm é um problema -como encontrar um meio de chegar até o público e satisfazer esse apetite. Essas soluções imediatistas, de cortar orçamentos, cortar jornalistas, são completamente autodestrutivas. A imprensa tem de descobrir que está no negócio de vender conteúdo, não papel.
Folha - O que o sr. acha que fere mais a mídia a longo prazo: a falta de credibilidade causada por escândalos como o de Jason Blair ou a queda da circulação?
Wasserman - A questão da credibilidade é exagerada. As pessoas sempre foram cautelosas em relação à imprensa e sempre entenderam que a mídia tem limitações. Não é verdade que houve um tempo em que as pessoas acreditavam cegamente e agora ninguém mais acredita.
A grande crise tem a ver com o novo modelo econômico e com o fato de a publicidade estar migrando para outros meios, como a TV e, em menor grau, o on-line. E o curioso é que o apelo da TV não tem absolutamente nada a ver com credibilidade. Ou você acha que o anunciante acredita mais no que ouve no programa em que anuncia do que no que lê?
Folha - As relações entre o governo Bush e a imprensa são, no mínimo, tensas. Por quê?
Wasserman - Esse governo faz parte de um movimento político, e os movimentos políticos, diferentemente dos partidos políticos, tendem a ser muito intolerantes em relação às instituições da sociedade que resistem às pressões deles. É revelador que as principais instituições da sociedade que receberam as críticas mais ferrenhas desta administração foram o sistema judicial e a mídia.
As duas são baseadas em uma ética profissional que exige tanto a autonomia como a independência. Essa administração não tem a menor paciência com instituições que funcionem baseadas nas próprias regras.
Folha - Também no Brasil essa relação anda conturbada. A discussão atual é até que ponto seria ético trabalhar com informações resultantes de inquéritos judiciais e policiais sobre a vida privada de políticos ou resultantes da quebra legal de sigilo fiscal, bancário e telefônico. O jornalista, em nome do interesse público, pode solicitar que as autoridades quebrem esse sigilo ou repassem as informações?
Wasserman - Sim, desde que sejam relevantes para o interesse do público e não envolvam aspectos das vidas pessoais. Pessoais, não privadas, pois se tratam de pessoas públicas. Quanto à maneira com que foram obtidas, se respeitada a ética, é problema de quem deixou vazar, não do receptor. Os tribunais e as autoridades que cuidem melhor de seu sigilo. A função e os interesses da imprensa são outros.
Folha - Então, se a história é boa, relevante para o público...
Wasserman - Sim. É um problema. Onde botar o limite? A imprensa tem a obrigação de conseguir e publicar as informações que são relevantes para o público.
Folha - É assim aqui?
Wasserman - Há, nesse momento, muito medo nas Redações de sofrer um processo. Então a imprensa reluta mais em publicá-las hoje do que há alguns anos. E não sei se isso é bom.
Folha - Uma revista semanal brasileira recebeu, provavelmente do governo ou de políticos governistas, e publicou a informação sobre o sigilo bancário de um caseiro que havia desmentido depoimentos ao Congresso do então ministro da Fazenda. O que o sr. faria nesse caso? E a revista "Time"?
Wasserman - Acho a história fascinante e a teria publicado. Não sei se a "Time" ou a "Newsweek" fariam isso, mas não porque estas sejam melhores. Quanto a divulgar a fonte, depende do acordo feito. Se a revista prometeu sigilo, deveria respeitá-lo até o fim. Se o sigilo foi rompido por outras publicações, ainda assim a revista em questão deveria ter uma autorização da fonte para o seu caso específico para revelá-la.