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Receita de criatividade

Receita de criatividade


  



Simples, quase trivial. Ser criativo não depende de inspirações divinas, mas de muito trabalho. Um humorista, um estilista, um publicitário e um inventor contam como conseguem

João Rafael Torres
Da equipe do Correio

Zuleika de Souza/CB

Bibiana Laurente/Divulgação
Nanina Rosa, da Imaginarium: "é preciso sensibilidade para criar"
 
"Por que eu não pensei nisso antes?" Sempre que nos deparamos com essa indagação, estamos diante de uma idéia criativa. A espontaneidade para solucionar problemas é uma capacidade sempre invejada. É bem verdade que grandes gênios, como Leonardo Da Vinci e Albert Einstein, parecem raros na atualidade. Mas isso é normal dentro do processo criativo. Muitos só são reconhecidos depois de mortos. Há quem garanta que entrar nesse time seleto é uma questão de treino e informação. Entre pesquisadores e pessoas reconhecidas pelo caráter inovador, existe um consenso: a criatividade é muito menos divina do que se imagina. "É muito mais transpiração do que inspiração", garante Nanina Rosa, diretora da equipe de criação da rede Imaginarium. "Não é só originalidade, mas também é ter sensibilidade para perceber problemas e solucioná-los com eficácia", ensina a psicóloga Eunice Alencar, que há 30 anos se dedica ao estudo dessa característica. Em busca da fórmula da criatividade, a Revista ouviu pessoas inquietas, que acreditam que tudo ao seu redor precisa ser mudado, melhorado. Mas o que fazer para se tornar um criativo com C maiúsculo? Para desenvolver essa habilidade, só muito treino e exercício.


Arroz, feijão e uma boa idéia

Três chefs aceitaram o desafio de transformar o clássico e banal feijão com arroz num prato criativo no quesito apresentação. De quebra, eles deram sua receita de criatividade
Zuleika de Souza/CB
 

Crosta crocante de arroz, que serve de cumbuca para um semi-tutu de feijão. Para enfeitar, creme de arroz com especiarias e feijão frito.
Por Willian Chen Yen (Babel)

"Ser criativo é ter o conhecimento necessário de algo para ser capaz de transformá-lo. É apresentar o inusitado sem que isso se torne esdrúxulo."


Zuleika de Souza/CB
 

Creme de arroz com coentro e feijão tradicional. Para servir, usou uma panelinha de cobre e enfeitou com um crispy de arroz.
Por Rodrigo Sanchez (I Maestri)

"É usar a paixão pelo que gostamos de fazer para interpretar a realidade de outras formas."


Zuleika de Souza/CB
 

Algodão-doce de arroz com crocante, servido com espuma de feijão preto e consumê de feijão branco. Por Mara Alcamin (Zuu e Universal Dinner)

"É saber construir e desconstruir a todo momento."


Cada um na sua

O processo criativo varia de pessoa para pessoa. Nas artes, por exemplo, a capacidade de retratar o cotidiano dos fidalgos e plebeus de uma forma original fez de Molière um gênio da comédia. Mozart se destacou pela ousadia de suas composições. Os heterônimos de Fernando Pessoa renderam obras com diferentes nuances: do sarcasmo ao lirismo. Todos souberam trabalhar os elementos que tinham à disposição de uma forma que não foi pensada anteriormente.

A psicóloga Eunice Alencar, professora da Universidade Católica de Brasília, explica que com o tempo cada pessoa desenvolve estratégias para chegar a uma boa idéia. Existem aqueles que só produzem quando a mesa está organizada. Outros precisam estar cercados de diferentes fontes de informação. "A criatividade independe de tudo isso. O que classifica a qualidade do criativo é a capacidade do aproveitamento de idéias, isto é, saber desenvolvê-las para algo produtivo", explica a especialista.

É o que faz Nanina Rosa, diretora do departamento de criação da rede de lojas Imaginarium, que produz objetos de decoração. Na equipe dela, nove pessoas de variadas profissões exercitam a criatividade e produzem, em média, 30 novos produtos por mês. Ela ressalta que muitos surgem da observação de fotografias antigas e de passeios pela cidade. "Muitas coisas são reinventadas ou simplesmente organizadas para que sejam funcionais", explica. Para ela, a curiosidade é o principal atributo dos criativos. "É preciso ter um bom olho para se chegar a soluções criativas. Com um bom banco de dados dentro da cabeça, sabemos encontrar logo algum elemento para resolver problemas", ensina. Formada em arquitetura, Nanina não se considera uma pessoa criativa - e sim bem treinada. "Aprendi que criatividade não é inspiração. É transpiração. Uma idéia só é boa quando tem utilidade", justifica.

Quem assina embaixo dessa definição é o consultor Roberto Menna Barreto, que se dedica ao estudo da criatividade. Autor de livros especializados como Criatividade em propaganda e Deixa eu falar, ambos da Summus Editorial, Menna Barreto defende que a criatividade é sinônimo de muito trabalho - principalmente para provar que as novas idéias têm valor. "Quando poucas pessoas acreditam e dominam uma idéia criativa, ela se transforma num macete. Se ganha mais estrutura e mais popularidade, vira técnica ou tendência", explica.

Menna Barreto ressalta que é um erro comum tentar limitar o potencial criativo a artistas e inventores. Segundo o especialista, as manifestações criativas acontecem diariamente com todos nós. "Na verdade, ser criativo é encontrar soluções que facilitem a vida. Se essas invenções podem facilitar também a vida de outras pessoas, ela passa a ser reconhecida por esse talento."


Ser criativo, uma questão de.
Zuleika de Souza/30.6.01
 

Combinar e transgredir
O estilista Ronaldo Fraga, 38 anos, é apontado como um dos principais nomes da moda brasileira, inclusive no cenário internacional. Segundo ele, o sucesso de suas criações está na capacidade de ler o gosto de suas clientes. "Desempenho a criatividade ao tapar os buracos dos desejos. Mais importante do que a roupa é pensar no que ela pode propiciar de mudanças na vida de quem veste", define. Ronaldo explica que o desafio para criar uma coleção é fazer com que o público embarque na idéia que teve. Segundo ele, não é preciso muito para ser criativo. Basta saber combinar elementos básicos com requinte e um pouco de transgressão, sem perder a delicadeza.


Luiza Dantas/Carta Z Notícias
 

Procurar o novo
No Brasil, Chico Anysio se manteve como um artista multimídia - antes mesmo de essa palavra ser criada por alguém. Ele trabalhou como escritor, cronista, radialista, pintor, ator. Mas foi como comediante que ganhou a popularidade. Durante mais de 20 anos, ele apresentou programas semanais onde interpretava diferentes papéis. Ao todo, foram 209 personagens, em 59 anos de carreira. "Agora eles já não surgem mais. Naquela época, vivia catando o que ainda não tinha sido mostrado por ninguém para apresentar na televisão." Azambuja, Popó, Salomé, Bento Carneiro e Painho eram algumas das personalidades encarnadas por Chico toda semana, num processo frenético de criação. "Era uma grande loucura. Numa época, cheguei a gravar 12 personagens, com quatro cenas de cada um, das 13h às 20h. Era uma maluquice", lembra. E de onde vinha a inspiração? "Não existe isso de inspiração. O que existe é a necessidade de fazer um serviço", responde.


Zuleika de Souza/CB
 

Exercícios e macetes
Desde a infância, o publicitário Amilton Coelho, 41 anos, sempre foi uma criança ativa. Criava as próprias histórias em quadrinhos, dominava as brincadeiras com as outras crianças. Na escola, não se apertava diante das tarefas. Os professores admiravam sua capacidade de encontrar soluções irreverentes para os problemas apresentados. Quando estava no ensino médio, ganhou elogios da professora de português por causa de uma crônica que fez. O texto foi escrito 10 minutos antes da aula começar. A professora nunca soube disso. Foi nesse momento que o adolescente decidiu que ganharia dinheiro com isso. Fazer do óbvio algo diferente e interessante se tornou profissão para Amilton.

Hoje, é apontado no meio publicitário como um dos profissionais mais criativos da cidade. Talento que, segundo ele, é resultado de muito trabalho. "Apenas soube reconhecer em mim a área que tinha mais facilidade e depois aprimorar", explica. O exercício profissional fez com que Amilton aprendesse alguns macetes para chegar a boas idéias. Na época da faculdade, os melhores trabalhos surgiram quando ele tomava banho. "Vi que não poderia instalar um chuveiro na agência publicitária, então resolvi mudar de técnica." Hoje, quando o relógio corre e a iluminação não vem, ele vai para casa e descansa. Confia que no dia seguinte, bem cedo, a idéia estará na cabeça. "E o melhor é que ela sempre surge mesmo, por volta das 6h. Daí é registrá-la e melhorá-la", conta.


Zuleika de Souza/CB
 

Estudar e inventar
Muitas vezes, popularizar demais uma idéia não é bem vista por quem a teve - pode ser sinônimo de prejuízo. Bilhões e bilhões de reais estão em jogo nos tribunais em ações por disputa de patentes. Jonathas Madeira, 50, amazonense e cidadão de Brasília há 16 anos, é responsável pela alegria de muitas pessoas que gostam de beber uma cervejinha gelada. Criou o porta-garrafas com tampa, que evita o esquentamento da bebida e, conseqüentemente, que a garrafa fique "suada". A idéia de colocar uma tampa no suporte surgiu depois que um rótulo molhado de cerveja manchou uma camisa de Jonathas.

A invenção, registrada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, foi copiada antes mesmo que Jonathas entrasse em contato com as fábricas para uma produção industrial. Isso porque o processo entre o registro do novo produto e a liberação da carta-patente leva, em média, sete anos. "Assim como eu, muitos outros perdem dinheiro por causa da burocracia. Esse é um grande embate para a criatividade", reclama. No dia-a-dia, Jonathas foge da fama de Professor Pardal - o personagem de Walt Disney que fazia invenções mirabolantes, que nunca davam certo. O inventor, que já foi aviador civil e hoje se dedica aos estudos de filosofia, garante que toda idéia só é boa se estiver validada, se há informações palpáveis. "Sem conhecimento, os resultados não seriam objetivos e positivos. Tudo seria perda de tempo."


Zuleika de Souza/CB
 

LIÇÕES VALIOSAS

O consenso dos especialistas leva a uma conclusão: a criatividade não é um dom, mas uma capacidade inata do ser humano. Muitas vezes, porém, o pragmatismo do dia-a-dia faz com que boas idéias escapem rapidamente da cabeça. O que a princípio parece um devaneio pode se transformar na solução para um problema difícil. Basta saber trabalhar, dar forma às idéias. Veja algumas lições para uma vida criativa.

1. Multiplique as possibilidades. Para chegar à melhor resposta. Quando observamos um problema, não devemos nos contentar com a primeira solução que surja na nossa cabeça. Não se contente com uma idéia, por melhor que pareça no primeiro momento

2. Não ligue para o excesso de crítica dos outros. Grandes cientistas foram até ridicularizados quando apresentaram teorias revolucionárias. Muitas vezes, uma idéia que parece estranha demais só precisa ser trabalhada para se transformar numa boa solução

3. Forçar pode ser pior. Confie na espontaneidade das idéias. Quando estamos concentrados demais no problema, o melhor a fazer é manter-se um pouco afastado.
Os insights surgem quando menos esperamos, geralmente quando estamos em alguma atividade que não tem nenhuma ligação aparente com o problema

4. Idéias precisam ser trabalhadas, por melhores que pareçam ser. Não acredite em inspiração. Para ser eficiente, uma idéia criativa precisa ser testada. Dessa forma, ela terá valor

5. Informação é essencial para que se possa chegar a um bom resultado. Varie suas fontes de informação, assista a filmes, escute coisas diferentes, converse com as pessoas. As informações que recebemos diariamente serão usadas em associações que levam a uma idéia criativa

6. Fortaleça sua personalidade. Esse é um passo indispensável para que se tenha idéias originais. Desenvolva a autoconfiança e poder de iniciativa. Lembre-se que a sociedade tende a negar o que é diferente. Para ser criativo, você precisará ter coragem para defender suas idéias

7. Saiba arriscar no momento certo. Pode parecer chavão, mas só descobrimos atalhos que facilitam a vida quando decidimos não percorrer caminhos que os outros seguem. Lembre-se da máxima: ser criativo é ver o que todos vêem e pensar o que ninguém pensou

8. Brinque com a imaginação. Atividades lúdicas facilitam a descoberta de soluções para problemas. Pense como uma criança faria para resolver a questão e tente desenvolver algo sobre essa idéia

9. Tenha segurança antes de comentar para evitar que pessoas castradoras reprimam a idéia que começa a surgir. Antes de vender a própria idéia, acredite nela. Tenha argumentos que a fortaleçam

10. A imposição de um desafio é uma boa saída. Costumamos ter mais produtividade quando sofremos algum tipo de pressão, como prazos ou limites no orçamento. Só não exagere: o excesso de limites pode se transformar em estresse


Fonte: Eunice Soriano, psicóloga e especilaista em criatividade

Gênios do século 20

A primeira década do século 20 foi marcada por uma explosão de criatividade. Muitos paradigmas rompidos naquele período repercutem até os dias de hoje. Veja alguns exemplos de pessoas criativas, e suas respectivas invenções ou teorias, que mudaram o rumo da história.

 Alberto Santos Dumond
Apaixonado por balões e dirigíveis, o brasileiro construiu em 1906 o 14-BIS,
a primeira aeronave mais pesada que o ar, que se tornaria o protótipo dos modernos aviões. Dois anos antes, ele tinha idealizado o relógio de pulso

 Arbwehnelt
Em 1906, ele desenvolveu um sistema de manipulação de espelhos para refletir raios eletroquímicos projetados por um tubo. Vinte anos depois, esse sistema foi melhorado e surgiu a primeira televisão
 Marie Curie
A cientista polonesa ganhou, em 1903, o Prêmio Nobel de Física pelas descobertas que fez sobre a radioatividade, mais tarde usadas em diagnósticos médicos

 Albert Einstein
Com toda notável irreverência, o físico formula, em 1905, a teoria da relatividade, que deu ao mundo uma nova noção de tempo e espaço

 Sigmund Freud
Em 1900, o médico publicou a primeira edição de A interpretação dos sonhos, livro que se tornaria o marco inicial da piscanálise

 Pablo Picasso
Em 1901, o pintor espanhol faz desenhos para ilustrar a revista de um amigo. Seria o primeiro passo para a produção comercial de suas obras-de-arte



BASTA TREINAR
Ser criativo é apenas enxergar problemas de uma forma diferente para poder resolvê-los. Alguns exercícios que ajudam a desenvolver essa capacidade.

Contador de histórias
Escreva 12 palavras quaisquer.
A seguir, continue a história iniciada no parágrafo abaixo, usando as palavras anteriormente escritas. Você deve manter a ordem em que essas palavras foram apresentadas. Faça uma história com final feliz.
"Era uma manhã de primavera. Um jovem caminhava em um parque, quando de repente."

Defeitologia
Imagine que você é um especialista em defeitologia, isto é, em encontrar defeitos. Escolha um objeto qualquer e aponte o maior número de defeitos que ele pode apresentar.

Metáforas
Comparar sentimentos e situações com outros elementos ajuda a despertar a criatividade.
Complete as seguintes sentenças:
  • Aprender é como.
  • Um assalto é como.
  • Amar é como.
  • Uma paisagem bonita é como.
  • A empresa onde eu trabalho é como.

    Arquivo
    Cite o maior número de objetos que atendam aos critérios:
  • Tenham a forma de um triângulo e a cor preta
  • Sejam redondos, macios e comestíveis
  • Sejam duráveis, valiosos e frios

    Mudando a perspectiva
    O mesmo objeto pode ser observado e descrito por diferentes planos, de acordo com a posição de quem vê. Da mesma forma, as idéias precisam ser analisadas em diferentes ângulos. Tente descrever o seu local de trabalho, como se observasse pelos olhos de cada um dos seguintes personagens:

  • Seu chefe imediato
  • O estagiário
  • A secretária
  • A pessoa que serve o cafezinho
  • Um cliente da empresa

    FONTE: O processo da criatividade, de Eunice Soriano de Alencar, editora Makron Books



  • INSIGHTS SOBRE O QUE É SER CRIATIVO
    Em entrevista à Revista, o consultor Roberto Menna Barreto, especialista em criatividade, explicou por que a criatividade é tão ressaltada em umas pessoas e tão discreta em outras. Autor de diversos livros sobre o tema, Menna Barreto considera que o mérito da pessoa criativa está em saber aproveitar as idéias de forma prática. Veja algumas idéias do autor:

  • A criatividade tem fórmula simples: CRIATIVIDADE = bom humor (leveza para encarar os problemas) + irreverência (romper com as reverências, saber que tudo é relativo) + pressão (ter prazos ou limitações que "forcem" a idéia a surgir, sem que isso implique em estresse)
  • O pensamento criativo é primário, não-elaborado e concreto. Assemelha-se ao pensamento infantil e com o instinto que conduz os animais. Para acontecer, ele não depende da nossa vontade e é difícil de ser analisado. Difere assim do pensamento racional (lógico, analítico e embasado em regras)
  • O insight, ou lampejo criativo, ocorre quando conseguimos mudar o ponto de vista sobre determinado problema. É como se tateássemos na parede de um quarto até achar o interruptor de luz. Se temos mais informações sobre aquele ambiente, encontraremos o interruptor com mais facilidade. Depois que acendemos a luz, a localização dele na parede parece óbvia - nos perguntamos por que gastamos tanto tempo procurando
  • Reter um insight nem sempre é fácil. Muitas vezes perdemos uma boa idéia simplesmente por não tê-la registrado em tempo hábil. Todas as pessoas reconhecidas pela criatividade estão sempre munidas de papel e caneta ou gravador para não perder nada
  • Criar demais também não é mérito. A diferença entre criatividade e devaneio está na capacidade de aproveitamento de idéias. O excesso de poder de abstração pode ser inútil, caso a pessoa não consiga amadurecer o pensamento
  • Para ser criativo, não é preciso ser revolucionário. O verdadeiro processo de criatividade não implica em quebrar regras, e sim em criar novos paradigmas que se sobreponham aqueles anteriores. Melhor do que gritar para defender uma nova verdade é provar que ela é uma verdade

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