Lei que deveria impedir os governantes de serem irresponsáveis com o dinheiro público não pegou. Falta de transparência e de punição são pontos frágeis e risco de descontrole é maior em ano eleitoral. Além de as determinações serem frouxas em vários aspectos importantes, as sanções previstas nela e na Lei de Crimes Fiscais são leves e não vêm sendo aplicadas pelos órgãos responsáveis, como os tribunais de contas. Não há notícia de administrador público punido por ferir um de seus itens.
Para o autor do estudo, o economista Edilberto Pontes, a lei é um avanço, mas não o suficiente
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que completa seis anos de idade em maio, é insuficiente para cumprir sua principal função: evitar a gastança dos governantes. Além de as determinações serem frouxas em vários aspectos importantes, as sanções previstas nela e na Lei de Crimes Fiscais são leves e não vêm sendo aplicadas pelos órgãos responsáveis, como os tribunais de contas. Não há notícia de administrador público punido por ferir um de seus itens. Para piorar, por causa da completa falta de transparência, ninguém consegue saber nem ao menos se a LRF está sendo de fato cumprida pelos três níveis de governo - federal, estadual e municipal.
As conclusões são do economista Edilberto Pontes, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em Brasília. Sua tese de doutorado na Universidade de Brasília (UnB), "Regras Fiscais: Teoria e Evidência", ganhou menção honrosa no Prêmio Brasil de Economia e será transformada em livro pela editora Plenarium, da Câmara dos Deputados, onde o autor trabalha como consultor legislativo. A ineficiência de uma legislação considerada crucial para o controle das contas no país é ainda mais preocupante num ano eleitoral, em que diversos governadores e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vão tentar ganhar um segundo mandato.
A eleição deste ano será a segunda para os governos estaduais e federal desde que a LRF foi criada, em 2000. Será um teste para a eficácia de suas normas. O setor público está com as contas razoavelmente em ordem e dispõe de mais recursos em caixa para gastar, impulsionando candidaturas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, concentrou investimentos em infra-estrutura neste ano e coloca todas as suas fichas no desempenho da economia.
Falta controle Mas são poucas as chances de o controle do comportamento dos candidatos à reeleição ser rígido. "A LRF não pegou totalmente no país. Sem dúvida, ela é um avanço importante, mas ainda tem muitas fragilidades, como penalidades fracas para inibir o comportamento irresponsável do ponto de vista fiscal. A nossa lei tem problemas em todos os critérios aceitos internacionalmente para verificar a eficácia desse tipo de legislação", avalia Pontes. Ele dá como exemplo uma falha que torna ineficiente uma espécie de espinha dorsal da lei: a proibição de que os governos criem despesas continuadas sem que se cortem outros gastos correntes ou se aumente a arrecadação no mesmo valor.
Mas, como não há nenhuma penalidade prevista para quem descumpri-la, a determinação se tornou inócua. Segundo Pontes, os exemplos de descumprimento são muitos. Para ficar só na esfera federal, não houve previsão de aumento de receitas ou de corte de gastos equivalente na criação do Programa Bolsa Família, a principal ação social do governo. A reforma administrativa no início do mandato de Lula, que implicou a criação de vários ministérios e secretarias com orçamento e corpo de funcionários próprios, também não respeitou a determinação. Muito menos a contratação de milhares de servidores nos concursos nos últimos três anos.
Lopes também considera inócua a pena prevista para o administrador que desrespeitar a meta de superávit primário (economia para pagar juros da dívida pública): multa de 30% dos vencimentos anuais. Desde 1998, as metas para o consolidado do setor público vêm sendo cumpridas até com uma certa folga. No ano passado, o objetivo era atingir 4,25% do PIB e o resultado final foi de 4,84%. Entretanto, governantes gastadores podem ignorar a regra sem maiores preocupações. A LRF prevê a cobrança da multa apenas se o administrador não se esforçou para cumprir o superávit. "É muito fácil um governador dizer que fez de tudo para chegar lá, mas não deu. A lei só pune a sua inação", atesta.
Números escondidos Outro ponto de grande importância na lei, o limite para endividamento público, está apenas parcialmente implantado. Os estados não podem ter uma dívida superior a duas vezes o valor de suas receitas correntes, enquanto o teto para municípios é de 1,2.
Na prática, governadores e prefeitos ainda não tomaram medidas decisivas para cortar a dívida porque existe um prazo de 15 anos para a adaptação. O limite nunca foi de fato estabelecido para a União. Temendo prejudicar a política monetária, o governo evitou discutir o assunto. Além disso, os valores existentes hoje são determinados por uma simples resolução do Senado.
O economista critica também a falta de transparência na administração pública quando o assunto é o respeito à LRF. Hoje, com raras exceções, é impossível saber se as regras de controle das contas e de bom procedimento fiscal estão sendo de fato respeitadas. Para escrever sua tese, Lopes fez uma pesquisa nos tribunais de contas do país e não conseguiu dados sobre o cumprimento. Os relatórios de gestão fiscal periódicos mostram muito pouco. Praticamente apenas o superávit primário e os limites de gastos com despesas de pessoal podem ser facilmente verificados - a União não pode gastar mais de 50% das receitas com a folha do funcionalismo, teto que sobe para 60% no caso de estados e municípios.
"O Brasil está totalmente reprovado no item transparência. Seria preciso haver um check-list das exigências, para todos os entes da federação, disponível nas páginas dos tribunais de contas na internet. Só assim a sociedade saberia com certeza se as normas estão sendo cumpridas", defende. O fato de os ministros dos tribunais serem quase sempre políticos indicados pelo Legislativo diminui a independência nos julgamentos. Para Lopes, é natural que eles continuem fazendo política nos novos cargos, o que acaba impedindo uma apreciação mais rígida do comportamento fiscal dos governantes. Ou seja, no Brasil, a independência dos tribunais é apenas formal.
Sociedade é a chave
Diversos países adotaram alguma espécie de regra disciplinando o comportamento fiscal nos últimos 15 anos, mas nenhum deles pode ser considerado um modelo ideal, onde todas as exigências sejam exemplarmente cumpridas. A experiência mais conhecida é a da União Européia (UE). Para fazer parte do grupo, não se pode ter um déficit nominal (resultado nas contas públicas depois de pago os juros da dívida) superior a 3% do Produto Interno Bruto (PIB). Mas mesmo essa regra é flexível: vários países já a desrespeitaram em anos de dificuldades econômicas e nem por isso sofreram sanções. No máximo, os sisudos dirigentes europeus fazem um alerta sobre a necessidade de um ajuste mais eficaz.
De acordo com o levantamento do professor Edilberto Pontes, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em Brasília, as regras mais comuns são as que determinam limites para o endividamento público e metas fiscais. Avaliação da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países ricos da Europa, concluiu que as leis de responsabilidade fiscal foram importantes para o equilíbrio das contas tão em voga a partir dos anos 90. Mas, ao mesmo tempo, ressalta que elas não foram suficientes para evitar a deterioração orçamentária quando as economias passaram por choques imprevistos ou quando as pressões políticas pela elevação dos gastos foram muito fortes.
"Para que regras como essas funcionem de fato, a coesão política e da sociedade em torno da responsabilidade com as contas públicas é muito mais importante do que o estabelecimento de uma lei rígida. Há exemplos de países em que leis não impediram o descalabro e outros em que elas não foram necessárias na contenção dos gastos", pondera Lopes. Na história recente do Brasil, o governo determinou a produção de superávits fiscais como regra antes da LRF. Foi no final de 1998, quando se temia um ataque especulativo ao real, na esteira da crise da Rússia. A medida não evitou a crise, que veio, mas introduziu o assunto do equilíbrio das contas na administração. Hoje, governantes gastadores são malvistos pela sociedade brasileira. (RA)