- 01 de novembro de 2024
Quaresma, semana santa... Acho que estou ficando velho... Sou do tempo em que se guardava a quaresma com respeito. Coitado daqueles que aniversariassem durante esses 40 dias entre a quarta-feira de cinzas e o sábado de aleluia. Festa? Nem pensar.
No meu tempo de menino eu detestava a sexta-feira santa. Até brincar era proibido.
Tudo mudou. Com a liberdade de informação vieram à tona os podres da igreja católica. A proliferação de seitas e religiões tirou-lhe, graças a Deus, a hegemonia doutrora. A semana santa nada mais é do que um grande comércio. Vende-se de tudo. Vende-se até a Paixão de Cristo. Vejam dois exemplos: Nova Jerusalém em Pernambuco e Mucajaí em Roraima.
A encenação da Paixão de Cristo em Mucajaí, começou de maneira simples e descompromissada, mas, ao longo dos anos, transformou-se em espetáculo de grande porte que, na verdade, hoje, é o maior evento daquele município. Atores de renome nacional são importados para papéis de destaque e o afluxo de público é imenso. A encenação é sucesso garantido.
Noutros tempos, quando este teatro era embrionário, os moradores do lugarejo atuavam como atores no sofrimento de Cristo e desempenhavam a contento todos os papéis dos personagens.
Eis que, naqueles tempos, durante a preparação do evento, João Padiola, descobriu que sua esposa, Gracinete, que fazia papel de Maria, mãe de Jesus, não era mulher muito séria; tava mais pra Maria Madalena. Alertado pelos vizinhos, Padiola passou a investigar os passos da patroa e descobriu que Joca Brito era o preferido de sua parceira. Bonito, alto, esbelto, olhos verdes, barba cerrada bem tratada, Joca Brito, na encenação da peça, encarnava Cristo e, nas horas vagas, entre um e outro ensaio, atuava como fogoso reprodutor em cima de Gracinete - a Nossa Senhora.
João Padiola decidiu aplicar uns corretivos naquele "Judas" que lhe enfeitava a cabeça com diadema de vaca - chifres. Queria dar-lhe uma lição, mas sem trazer escândalo e vergonha para si ou para os filhos. Foi daí que teve brilhante idéia: falou com Zé Bigorna que, na peça, fazia papel de um centurião, algoz de Cristo em seu calvário; explicou-lhe a situação e comprou-lhe a vaga na peça a ser encenada. Zé deu todas as dicas para o novo ator: "Tudo o que você tem que fazer é mostrar cara de mau e chicotear as costas de Jesus quando este estiver carregando a cruz em seu sofrimento". Com estas poucas palavras passou-lhe as vestes de soldado romano e um chicote feito com fibras de ráfia que, supunha-se, não machucariam o Filho de Deus.
Mas João Padiola, queria vingança. "Como é que vou surrá-lo com fibra de ráfia se o que eu quero é dar uma lição neste Iscariodes filho-da-puta?" Matutou..., matutou e logo decidiu prender nos fios daquele leve chicote pequenos pedaços de chumbo - desses usados para fazer afundar linha de pesca. Cuidadosamente encastoou cento e vinte chumbadas no rebenque e guardou a arma para a hora certa.
Chegou a tarde de sexta-feira e iniciou-se o grande espetáculo: Última Ceia..., beijo de Judas..., condenação por Pilatos..., etc. Cristo recebeu sua cruz, e começou sua dolorosa caminhada. Ao receber a primeira lambada desferida pelo centurião, Padiola, nosso Filho-de-Deus, expressou muita dor e soltou um forte gemido. O soldado romano, satisfeito, desferiu-lhe com mais força nova lambada e falou-lhe baixinho, com os dentes cerrados:
- "Irmão, tu vai apanhar mais do que galinha pra largar o choco. Até a crucificação tu vai levar tanta chicotada que tu vai aprender a respeitar mulher alheia, seu escroto!!!"
Dizem que se a encenação daquele ano tivesse se passado em Hollywood, Joca Brito teria ganho o Oscar de melhor ator, pois os espectadores nunca tinham visto encenação tão real de sofrimento.
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