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À esquerda do PT - Fernando Henrique Cardoso

Ex-presidente FHC diz que Lula está perdendo o respeito e defende nova postura para o PSDB. "Lula não disse pra que veio e não cumpriu o que prometeu".



Luiz Carlos Azedo e Denise Rothenburg
Da equipe do Correio

Toda vez que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso abre a boca para falar do governo, morde mais do que assopra. Para ele, o Palácio do Planalto não tem rumo e Lula está perdendo o respeito da sociedade. Propõe uma nova agenda para o país, que desate o nó da economia, e quer ver os tucanos em posição mais arrojada: "Eu não tenho dúvida de que o PSDB tem de ir para a esquerda, não na retórica, mas substantivamente. Não tenho dúvida quanto a isso", afirma.

Fernando Henrique é o árbitro da disputa interna entre o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito paulistano, José Serra, pela vaga de candidato tucano à Presidência da República, mas minimiza o conflito: "Qualquer um dos dois será bom candidato". Ainda admite o peso eleitoral do presidente Lula, mas considera improvável a reeleição. Colocando-se fora da disputa, Fernando Henrique garante que é muito melhor ser ex-presidente da República.


Entrevista - Fernando Henrique Cardoso

Zuleika de Souza/CB/18.11.05
Zuleika de Souza/CB/18.11.05
 

O senhor disse na convenção do PSDB que não quer uma campanha de acusações e vai derrotar o presidente Lula nas urnas. Isso é um recado para o seu partido de que chega dessa história de impeachment?
Impeachment é uma coisa muito séria. Se há um motivo efetivo, faça-o. Se não há um motivo efetivo, por que falar? Nós estamos nos aproximando das eleições e é melhor nos prepararmos para ela. Impeachment é um processo político, não é um processo jurídico. Tem de ter uma movimentação da sociedade nessa direção. Não sinto que haja isso.

O PSDB tem se comportado como uma espécie de fiador da estabilidade do governo Lula nos momentos mais delicados da crise. Como o senhor avalia essa atitude?
O PSDB é um partido institucional, sempre foi. Ele tem atuado com cautela não por causa do governo, mas por causa das instituições. Tem que se separar as duas coisas. O partido tem que ser oposição ao governo. O que isso quer dizer? É oposição às políticas do governo. Obviamente as políticas são feitas por pessoas. Mas não se pode levar isso a um ponto que ponha em risco as instituições. Não quer dizer, porém, que a gente vai botar uma venda nos olhos. Havendo um caso errado, que exige o impeachment, se for o caso, tem que usar o impeachment. As instituições se validam quando a lei é exercida. Existe um limite entre uma posição responsável e uma posição -que não é o caso do PSDB - de cumplicidade. Não pode haver cumplicidade. O que houver de errado tem que ser mostrado à população.

Essa posição responsável, por exemplo, é defender a atual política econômica?
Eu já disse mais de uma vez. Esses fundamentos macroeconômicos foram feitos no meu governo. Basicamente, o câmbio flutuante, a lei de responsabilidade fiscal e a política monetária que controlam a inflação. Agora, o manejo disso depende das circunstâncias. Não há porque dizer que está sempre certo. Essa taxa de juros elevada do jeito que está há tanto tempo terá efeitos. E a valorização da taxa de câmbio como está hoje também. É exagerado. Eu não subscrevo isso.

O novo presidente do partido, Tasso Jereissati, ajudou o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, a enfrentar dificuldades com o Congresso. E passou a impressão de que o PSDB está apoiando mais o ministro do que o próprio presidente Lula. Como o senhor avalia a atuação de Palocci?
Não estava aqui e não acompanhei o que aconteceu. Mas penso que o PSDB não tem que tirar essa castanha do fogo. Tem uma porção de gente dentro do PT - não sei qual é a posição do presidente Lula - que gostaria de mudar a política econômica. O PSDB não deve ser instrumento dessas pessoas que querem tirar o ministro Palocci. Nossa posição em relação ao ministro é no sentido de dizer que ele tem procurado conduzir responsavelmente a economia. Outra coisa são as acusações existentes de ordem pessoal e a grupos ligados a ele. Aí tem que apurar. É um equilíbrio difícil, não podemos aproveitar momentos de fraqueza para criar problemas para e economia. Mas o PSDB tem chamado para depor o pessoal ligado ao ministro Palocci.

O PSDB não quer ser responsabilizado pela saída do ministro Palocci, é isso?
Esse é um problema do presidente Lula. Outra coisa é o problema da CPI.
O PSDB vem tendo certa dificuldade para se posicionar em relação aos rumos do país no governo Lula, afora essa questão ética.
Já falei mais de uma vez: eles não apresentaram rumos diferentes. Alguém pode pensar: "O PSDB está contente". Não, nós não estamos contentes. Poderiam ter mudado outras coisas, nós não fizemos tudo o que tinha que ser feito.

Qual é a sua maior crítica ao governo Lula e qual o seu maior arrependimento em relação ao período em que exerceu a presidência?
Qual é a crítica que nós temos ao governo? Uma é o fato de não ter sido capaz de definir uma estratégia e fazer uma política de alianças sem ter essa estratégia definida. Outra, a confusão da máquina pública com a máquina partidária, com perda de eficiência do setor público. Isso resultou - você pode olhar no Congresso - na falta de agenda. A que está lá é aquela que a gente deixou. Qual é a agenda nova? Além disso, no exercício do governo, a substituição de profissionais por militantes não dá bom resultado. Uma área que chama muita atenção é a reforma agrária. Fizeram muito menos do que eu fiz. Na verdade, havia um processo que deveria ser melhorado, não paralisado. Por que não fez mais na educação? O que se fez de novo na saúde? Falo de coisas que dizem respeito ao povo, que sente mais as deficiências na prestação de serviços.

Quando o senhor fala que o PT conspira contra a democracia, o que quer dizer com isso?

Critico essa visão que o PT sempre teve, de que ele é o único capaz de fazer as coisas e não aceitar o outro. Depois da transição que eu fiz, por que o PT resolveu escolher como adversário o PSDB? Qual é a razão? Começaram logo a falar de herança maldita, da qual vivem hoje. O José Dirceu logo de início disse que eu deveria ir cuidar dos meus netos. Nunca pensaram na possibilidade de alguma convergência e foram buscar alianças sem ter definido objetivos. Isso deu no que deu. Por quê? Porque tem a visão de ser o único partido chamado a dirigir o país. Como o PSDB tem quadros e já dirigiu o país, é o adversário do PT.

O aliado natural do PT seria o PSDB?
Poderia ser. Mas já não digo isso. O que separa mais o PSDB do PT hoje não é o mercado. O PT aderiu ao mercado até com mais voracidade do que eu imaginava e do que eu acho necessário. O que separa é a democracia. Quando eu falo que se está deteriorando as instituições, contaminando as instituições, é a idéia de democracia, da separação do público e do privado. Isso nos separa mais do que o mercado. É curioso isso. Então, no fundo, ambos são partidos sociais democráticos. O PT não queria aceitar isso, mas passou a ser - só que com menos amor a certas práticas tradicionais da democracia e nós temos mais amor a essas práticas. E não é em contraposição à participação ampliada, que sou favorável, mas em contraposição à utilização do Estado para fins partidários ou privados. Naquela época, eu pensava que o PT tinha objetivos e hoje já acho que não tem. O objetivo é apenas ficar no governo, a reeleição. Logo o PT, que tanto me acusou de pensar só na reeleição. Eu era favorável à tese da reeleição, mas tinha objetivos para o Brasil. E fiz as reformas. Mas não fiz tudo. Dou dois exemplos: sempre deixei a reforma política nas mãos do Congresso, nunca entrei diretamente nela, mas hoje penso que a reforma eleitoral era fundamental. O que está acontecendo é conseqüência em grande parte do sistema eleitoral. Em segundo lugar, poderia ter ajustado o câmbio em 1997 e, com mais dificuldade, em 1998. Só que ninguém queria.

Então, José Serra tinha razão?
O Serra sempre quis, desde antes. Poderia ter feito a mudança em 1997, antes da crise asiática. Depois da crise asiática, diminuiu o ímpeto de mudar. Ninguém queria mudar. Só quem queria era o Serra e o Delfim, sobretudo por causa do setor industrial, que pressionava. Penso que talvez isso fosse possível naquela ocasião. Digo talvez, porque hoje é mais fácil analisar, mas naquele momento era uma decisão muito difícil. De qualquer maneira, só topei a reeleição porque de outro modo eu não iria governar. O ajuste fiscal começou no primeiro mandato, mas foi no segundo mandato que ele foi efetivado. No primeiro não tinha nem como fazer, ninguém sabia quem devia e quanto a quem. Até pôr em ordem as dívidas dos estados, municípios, dos bancos, não tínhamos os instrumentos. Construi esses instrumentos todos, mas a lei de responsabilidade fiscal só ficou pronta no ano 2000. As modificações maiores eu fiz no segundo mandato, não foi no primeiro.

O senhor tem falando que o atual superávit fiscal esconde um descontrole das contas públicas.
Estou falando o seguinte: se você olhar as contas da Previdência, elas não são de modo a acalmar. E se olhar o gasto público, cresceu muito.

Isso trará problemas futuros?
Depende um pouco. Nesse momento, a taxa de crescimento não é elevada, mas é razoável, em torno de 3% a 3,5% do PIB. Se conseguir acelerar mais a economia, o governo terá mais recursos. A tributação é muito elevada, a carga fiscal é muito alta, portanto poderá se ajustar. Senão, se houver dificuldades mais adiante, vai reaparecer o problema do déficit fiscal.

O senhor propõe uma agenda nova para o país?
Estamos numa situação em que é preciso fazer de novo o que foi feito quando elaboramos o Plano Real. Como é que se resolve a questão da taxa de juros no Brasil? Não é mais razoável que tenhamos uma taxa de juros real de 12% a 13% ao ano. Eu não estou acusando o ministro da Fazenda, nem o Banco Central. Mas é preciso fazer um esforço para superar essa situação. O pessoal tem medo da volta da inflação por causa disso, de acelerar a demanda. Mas esse é um problema que precisa ser enfrentado. Eu não creio que se possa deixar essa questão de lado. Um governo novo precisará enfrentar isso de forma responsável. Só aí será possível falar em reforma tributária, uma palavra vaga no Congresso, porque os interesses são muito contraditórios.

Falta massa crítica para formular uma alternativa ou há interesses que funcionam como um garrote da economia?
As duas coisas e mais uma terceira: é preciso uma corrente na sociedade que apoie uma outra saída, senão você faz o plano e ele morre tecnocraticamente. É preciso um debate, não é uma coisa fácil. Eu não estou cobrando do governo que faça isso.
O senhor está se posicionando à esquerda do governo Lula?
Eu não tenho dúvida quanto a isso. Essa é uma condição necessária para o país avançar. Eu não tenho dúvida de que o PSDB tem que ir para a esquerda, não na retórica, mas substantivamente. Não tenho dúvida quanto a isso.

Mas aliado ao PFL, um partido considerado mais conservador?
Isso não tem importância. O problema das alianças é quando você não tem rumo. Se você for o carro-chefe, os aliados vão na mesma direção. Mas acho que nós devemos procurar outras alianças também, o PPS, o PDT. Sou favorável a isso.

O senhor propõe essa guinada para fazer o país crescer?
Não é só taxa de crescimento. A pergunta é crescer para fazer o quê? Por exemplo, quando o Brasil crescia 7% ao ano, no governo militar, a sociedade ia mal na educação e na saúde. Desenvolvimento não é taxa de crescimento. Nós não podemos ficar obcecados pela taxa de crescimento, precisamos de uma mudança qualitativa. Temos que enfrentar os problemas da sociedade. Nós paramos a modernização do Estado. Nos temos um mundo globalizado, melhoramos, aprendemos a lidar com isso. Mas as estruturas dos órgãos reguladores, que são fundamentais para uma economia como a de hoje, pararam, perderam força, foram nomeados políticos para funções que deveriam ser ocupadas por técnicos qualificados. Isso é uma condição para o crescimento. É preciso dar mais força a essas estruturas e continuar a reforma do Estado. Não se fala mais de reforma, houve uma paralisação. O PSDB também precisa ter idéias novas nessa matéria e outras mais. Resolver o nó da economia, fazer muito mais na educação, investir na infra-estrutura, continuar a reforma do Estado, profissionalizar mais a gestão. Além disso, ter algumas outras preocupações que não estavam na nossa ordem do dia.

Por exemplo?
A questão da droga e da segurança pública, que não é diretamente afeta ao governo federal, tem que ser enfrentada. Isso é uma questão do povo. Em primeiro lugar, tem várias medidas no Congresso que não foram aprovadas. A coordenação das polícias hoje não existe. O governo federal não tem voz nisso, as policias estaduais brigam, não têm uniformidade. Tem que haver muito mais esforço nessa área, que está afetando a vida cotidiana do cidadão.

Mas já no primeiro mandato do senhor, a segurança era um dos cinco dedos da mão. Por que essa questão não foi resolvida?
Posso dizer que comecei a fazer. Fiz o que foi possível, é um processo. Não entro nessa briga. Isso é ruim. O Lula pensa que é o Pedro Álvares Cabral, tudo ele diz que é feito "pela primeira vez". Não penso assim. É um processo que precisa ser acelerado.

Quem o senhor acha que está mais preparado para ser o presidente
da República, Geraldo Alckmin ou José Serra?

Nós temos uma sorte excepcional, porque ambos estão bem preparados. De maneira diferente, porque ambos têm experiências diferentes, mas positivas. Acho que não teremos dificuldades nesse sentido. Agora, o Aécio também tem experiência, o Tasso idem. O PSDB tem gente com experiência. O que eu disse na convenção é o que o penso. Eu me sinto confortável com qualquer desses nomes, com Serra ou com os outros.

O senhor não é candidato?
Não. Disse isso a vida inteira. Desde que deixei o governo.

Qual a chave para definir o candidato, o que vai pesar mais? A vontade individual ou a decisão do partido?
Todo o partido tem vocação de vitória, quer ganhar a parada. Lá por março, abril, as decisões importantes são tomadas, porque os dois mencionados, ou os três, com Aécio, têm que renunciar aos seus mandatos. Quem vai renunciar? Isso é um cálculo deles e não é do partido. É um cálculo difícil de fazer. Segundo, lá por março, qual será o estado de opinião pública para os candidatos, para eles se motivarem mais ou menos? Então, não adianta ficar pensando nesse momento. A tranqüilidade advém do fato de que qualquer deles têm condições de bem cumprir o papel. Eu penso que temos condições de organizar a vitória. O Tasso é muito bom para isso. Ele fez isso comigo. Ele é muito bom para organizar, para comandar um processo que chegue à vitória.

Matematicamente, o senhor não acha que Serra tem mais chance? Ele já participou de uma campanha presidencial, consolidou votos.
Só que matematicamente não é política. Se isso for um sentimento geral em março, abril, será ele. Se não for, não será ele. Porque também o Geraldo foi capaz de ganhar quando todo mundo achava que ele não ia ganhar (quando disputou o governo de São Paulo com Genoino, do PT). O Geraldo tem uma popularidade muito alta em São Paulo. E os dois têm aquilo que eu acho importante: respeito. Eu disse isso na convenção. Popularidade você ganha e você perde, tem que ter é respeito para poder liderar um país. Você não lidera um país só com popularidade. Os dois e alguns outros que mencionei são pessoas de respeito. Então, acho que são bons candidatos e nós podemos chegar a ganhar.

O senhor acha que o presidente Lula perdeu o respeito nessa crise?
Da opinião pública informada, acho que sim. Porque ele não disse a que veio, não fez o que dizia que ia fazer. O que ele dizia era uma coisa o que ele. Não sei se tentou fazer, o que ele fez foi outra. E isso é ruim.

O senhor avalia que o presidente Lula tem possibilidades de reeleição?
Acho difícil, mas tem. Eleição é coisa que você não pode prever nunca. Eu mencionei isso en passant lá. O presidente Lula, na verdade, gosta é de eleição. Ele gosta é de campanha. Ele está em campanha. E tem sagacidade. Ele sabe onde é que vai buscar o eleitor dele. E o que tem feito ultimamente? Ele tem falado para os desinformados. Ele não está procurando justificar frente aos que têm informação se está certo ou está errado. Ele faz um discurso dentro do pressuposto de que o que ele está dizendo não vai ser contestado. Ele não está dialogando com a oposição, com a imprensa, não está esclarecendo. Está reafirmando, está querendo ver se mantém acesa a chama nesse eleitorado. Por que eu acho que é difícil ele ganhar? Porque esse eleitorado é suscetível de mudança no curso da campanha. Esse eleitorado é desinformado, mas você fala e, na campanha, isso muda. Acho que o presidente Lula perdeu o apoio das classes médias, perdeu o apoio dos formadores de opinião.

Quando o senhor passou o cargo para o presidente Lula.
Passei emocionado.

O senhor ouviu de Lula que tinha deixado um amigo no seu lugar.
Ele me disse isso. E é verdade. Ele me disse isso com sinceridade naquele momento. Eu gosto do Lula. Acho até que a recíproca é verdadeira. Eu sempre achei que o presidente Lula, não é de agora, é lá de trás. Ele simbolizava, pela vida dele, pela história dele. Era mais um símbolo. Agora, a falta de liderança está diminuindo esse símbolo. Acho que, para o Brasil, seria importante que esse símbolo não desaparecesse. Você vê que eu nunca faço um ataque pessoal ao presidente Lula. E não é só porque eu gosto dele pessoalmente, acho que tem que se ter limites nessas coisas. O país precisa de ter gente que represente alguma coisa. Ele representa. Lamento que ele tenha se deixado confundir tanto. Acho que o começo foi pelas alianças, que não eram para nada, só para reeleger.

O que é melhor ser presidente ou ex-presidente?
Ex. Eu estou muito bem. De verdade.

O senhor vê alguma chance de reaproximação entre PT e PSDB?
É muito difícil, e eu penso em termos de Brasil.

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