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CÍRIO - Um show de fé no Pará

Sob o calor de 35 graus, 2 milhões de fiéis e pagadores de promessa participaram de procissão em homenagem à padroeira da Amazônia.



Ullisses Campbell
Enviado Especial

Belém (PA) - O pescador Raimundo Silva da Conceição, 41 anos, pagou ontem uma dívida antiga com Nossa Senhora de Nazaré, a padroeira da Amazônia. Há 10 anos, ele e a mulher, Maria, grávida de seis meses, tiveram de optar entre a vida da mãe ou a do filho. Os médicos diagnosticaram uma doença no bebê que colocaria em risco a mãe na hora do parto. Inconformado com o destino, Raimundo se agarrou à Nossa Senhora de Nazaré e pediu à santa que salvasse o filho e a mulher. Em troca, ele pagaria a graça alcançada com um sacrifício inusitado. Cobriria o corpo com 200 caranguejos vivos e seguiria a imagem de Nazaré pelo Círio de Belém. Como seu desejo foi atendido, ele cumpriu o prometido.

Junto com seu Raimundo, mais de 2 milhões de fiéis acertaram a conta com Nossa Senhora e saíram pelas ruas de Belém no 213º Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações religiosas do mundo. As principais ruas de Belém foram tomadas por uma multidão que sofria com o calor de 35 graus. Nessa época, a capital do Pará entra em colapso por conta da data que os moradores consideram tão importante quanto o Natal.

No total, a festa religiosa tem 11 procissões. A primeira ocorre ainda na manhã de sexta-feira, quando policiais rodoviários levam a imagem da Virgem da Basílica de Nazaré para a cidade de Ananindeua, na região metropolitana de Belém. De lá, a santa segue para o distrito de Icoaraci, e na manhã de sábado ela vai numa romaria fluvial pela Baía de Guajará numa corveta da Marinha. Pelas águas, mais de 600 embarcações seguiam Nazaré. Mas foi na manhã de domingo que o Círio tomou conta das ruas de Belém, proporcionando um espetáculo de fé e sacrifício. "É impressionante como as diferenças desaparecem durante a procissão. São pessoas de várias raças, idades e classes sociais unidas por um mesmo sentimento de fé e crença na mãe de Deus", descreve o governador do Pará, Simão Jatene (PSDB).

Sacrifícios
Além de beleza, o Círio exibe cenas de sacrifícios. Fiéis esfolam o joelho no asfalto para pagar promessas. Carregam tijolos na cabeça para agradecer à santa a tão sonhada casa própria. Para os devotos de Nazaré, todas as realizações importantes na vida só ocorrem com uma ajuda da Virgem. Seu Raimundo, o pescador que pagou a promessa com caranguejos, era uma das imagens mais fortes da procissão. Na manhã de sábado, ele foi ao mangue e catou com as próprias mãos 200 caranguejos. Amarrou um a um e fez uma espécie de manto vivo que cobre todo o corpo. Vivos, os animais beliscam seu corpo durante todo o trajeto. "Meu filho ficou três meses numa Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Era para ter morrido. Qualquer coisa que eu faça em homenagem à santa é pouco para pagar essa graça alcançada", diz.

A promessa do cozinheiro Jorge Correia começa a ser cumprida ainda na escuridão. Quatro horas da manhã ele já se ajoelha, pede proteção e tranqüilidade para completar o sétimo ano seguido em que faz todo o percurso do Círio de joelhos. Com os primeiros raios de sol, o suor começa a escorrer pelo corpo. Já com intenso calor e o corpo completamente molhado, os ferimentos causados pelo exercício repetitivo no asfalto começam a fazer os joelhos sangrarem. Voluntários envolvem a perna com alguns panos e Jorge continua. Após quase cinco horas, o cozinheiro chega à Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, onde tudo termina, e caem suas as primeiras lágrimas de emoção. "Obrigado mãe, por mais uma no de paz e saúde", rezou, emocionado. Jorge Correia acompanha o Círio desde criança e há sete anos paga a promessa por conta da cura de um derrame de sua mãe, que está em casa.

Cordão humano
O maior símbolo de sacrifício do Círio de Nazaré é uma polêmica corda de sisal de 400 metros que é atrelada à berlinda que conduz a imagem da santa. Cerca de sete mil promesseiros tentam segurar nela para puxá-la durante todo cortejo como forma de pagar uma promessa. A corda é o local mais tumultuado da promissão. É comum ver promesseiros sendo arrastados pelo cordão humano. Como definiu o governador do Pará, não há distinção entre ricos e pobres no Círio. Na corda, essa mistura é mais evidente.

O senador Fernando Flexa Ribeiro (PSDB-PA) acompanha o Círio na corda há 25 anos. Um dos seus filhos também nasceu com um problema de saúde grave. No desespero, recorreu à Virgem de Nazaré e teve uma graça alcançada. Hoje, aos 60 anos, ele ainda paga pela promessa. Segue o cortejo religioso espremido pela multidão. Na mesma corda, seguiu no ano passado o senador Eduardo Suplicy (PT-SP).

Neste ano, pela primeira vez, a senadora Heloisa Helena (PSOL-AL) aceitou um convite do deputado federal Babá (PSOL-PA) e foi acompanhar o Círio de Nazaré. Não teve coragem de encarar a tumultuada corda. Mas seguiu o cortejo do começo ao fim. Ficou impressionada com o que viu. "Sempre acompanhei pela televisão, mas não fazia idéia da dimensão. É uma festa muito bonita", descreveu. Ela garantiu que não fez nem pagou nenhuma promessa. Mas disse que o povo paraense bem que poderia pedir à santa que os políticos do Brasil crie vergonha na cara. Em seguida, emendou: "Se bem que os santos, que estão lá no céu, não têm nada a ver com a roubalheira que ocorre aqui na Terra".


Momentos de polêmica

O Círio de Nazaré é uma festa religiosa cercada de polêmicas. Começa que há um lado profano que salta aos olhos, despertando a ira da Igreja Católica. Na madrugada do domingo, há uma tradicional festa em que artistas, gays, lésbicas e simpatizantes prestam uma homenagem inusitada à Virgem Maria. Sobre um trio elétrico, a Festa da Chiquita, como é conhecida, atrai para o Centro de Belém principalmente turistas. Neste ano, o prefeito da cidade, Duciomar Costa (PTB), que é evangélico, proibiu o evento.

Outra polêmica que chamou a atenção dos fiéis foi a rapidez da procissão, que durou pouco menos de cinco horas. O Círio começou às 6h, e antes das 12h, a santa já havia chegado à Basílica de Nazaré, ponto final do cortejo. Nos anos anteriores, o trajeto de cinco quilômetros durava mais de 10 horas.

Para acelerar a procissão deste ano, os organizadores contaram com a ajuda do Exército, que abria caminho na multidão para que a berlinda que conduz a santa passasse com mais rapidez. A corda de promesseiros que costuma atrasar a procissão também foi puxada com mais força.

Os fiéis também reclamaram do cordão formado por mil homens do Exército que isolou o povo na hora em que a santa chegou ao Santuário de Nazaré, onde as homenagens se encerram. "Se deixar na mão do povo, a santa levará o dia inteiro para fazer todo o trajeto. Os próprios promesseiros não agüentariam tanto sacrifício", assegura o coordenador do Círio, Flávio Américo. (UC)

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