- 19 de novembro de 2024
Boa Vista - A morte de João Paulo II coloca fecho em período conturbado de nossa história (nós, que vivemos entre conturbações e agitações, num universo que nunca se acalma), ao encerrar o terceiro mais longo pontificado da Igreja. Os meios de comunicação despejam material laudatório, sem qualquer preocupação analítica, desinformando e deixando a desejar em ambiente favorecido pelo clima emocional que desarma a grande maioria. Uma das imagens mais impressionantes, grafada na mente dos que acompanharam a trajetória mundial de João Paulo II, foi sua visita à Nicarágua em março de 1983. No aeroporto, dedo em riste, logo ao chegar, repreendeu severamente o poeta e padre Ernesto Cardenal (que ficou ajoelhado, submisso), por conta de seu envolvimento no governo sandinista que substituiu a dinastia Somoza. O polonês Karol Wojtyla ascendeu ao trono de São Pedro no centro de controvérsia a respeito da morte de seu antecessor, Albino Luciani (João Paulo I), o "Papa Sorriso", que foi pontífice por apenas 33 dias e desapareceu na varredura que pretendia fazer no Vaticano, assaltado por elementos com ligações mafiosas altamente suspeitas, desde Lício Gelli (Loja Maçônica P2), passando por Michel Sidona até outras figuras menos votadas. O escritor inglês David Yallop relatou aqueles 33 dias em obra devastadora, "Em Nome de Deus", no qual conclui pelo assassinato de João Paulo I e coloca o então responsável pelas finanças do Vaticano, monsenhor Paul Marcinkus (norte-americano nascido em Cícero, Illinois), no centro das articulações daquele crime horrendo. João Paulo II assumiu e desceu silêncio absoluto sobre o tema, com o Vaticano se fechando a qualquer investigação ou cooperação, embora o governo dos EUA tivesse enviado emissários para tratar a respeito. O Estado soberano, o menor do mundo, não se mostrou disposto a exibir suas entranhas. João Paulo II ajudou de forma decisiva na derrubada do sistema comunista, o qual se encontrava exangue e vitimado por contradições gritantes (como o capitalismo agora se mostra esgotado e clama desesperado por saída). Contudo, na opinião dos mais destacados teólogos e integrantes da Igreja Católica, pautou sua linha de ação por um "autoritarismo extremado" e fez mais mal do que bem à instituição. Suas atitudes levaram a Igreja de volta ao tipo de centralização exercido pelo Papa Pio XII (1939-58), sobre quem o católico inglês John Cornwell escreveu livro no qual aponta sua conivência com a Alemanha nazista (o título é "O Papa de Hitler"). Além do mais, doente há muito tempo, João Paulo II ficou preso a seu secretário particular e a grupo de cardeais conservadores que, na realidade, ficaram à frente da condução da Igreja. Apesar de defender os direitos humanos e a prática do diálogo, as atitudes de Wojtyla foram sempre ditatoriais e contrárias à liberdade no âmbito interno. Seu comportamento com relação ao uso de anticoncepcionais, especialmente a camisinha, em muito contribuiu para o afastamento de fiéis e para o agravamento de situações epidêmicas num mundo prejudicado pelo advento da aids. Em artigo publicado no jornal italiano "Corriere della Será", no último sábado (02), o teólogo suíço Hans Kung afirmou que João Paulo II "não é o maior Papa do século XX, é o mais contraditório". E enumerou a maioria das deficiências de seu pontificado, mostrando o retrocesso acontecido na sua passagem como pontífice. Mas tudo isso agora pertence à história, erros e acertos, nessa caminhada sem volta que somos obrigados a percorrer. Email: [email protected]