- 19 de novembro de 2024
JOBIS PODOSAN
ABAIXO DE DEUS
A santificação do juiz o conduz à incompetência. Ele passa a considerar-se um fim em si mesmo. A linguagem forense, viciosa e, às vezes, jocosa, trata o juiz como se ele não fosse humano, como se estivesse sempre a outorgar milagres. Os juízes ficam tão envaidecidos que não percebem que a linguagem quando ele está de frente é completamente diversa de quando ele está de costas. Sequer a ironia do rebuscado tratamento percebem. Passam a gostar do vitupério falsamente elogioso como se não fosse seu dever prestar jurisdição. A veneração à pessoa oblitera o resultado e a qualidade do trabalho do juiz. Sendo ser humano, o juiz, tratado como se fosse um deus, termina por acreditar que é. Aliás, não é raro se ouvir de alguns: na terra, abaixo de Deus, o juiz.
A esse propósito, RENATO NALINI, ex-presidente do TJSP faz uma referência chistosa a respeito dos juízes:
“A ênfase nessa autoestima explica aquilo que em jargão judicial se conhece como juizite. E também a proliferação de dísticos jocosos sobre os jovens juízes, tais como: prestam concurso para juiz e são nomeados semideuses. Ou a cáustica observação de que os juízes-recém aprovados se consideram tão importantes, mas tão importantes, que só podem conversar entre si. Ou então com Deus, quando Deus precisa de conselhos”
A propósito, assinalou DALLARI:
No Poder Judiciário as mudanças foram mínimas, em todos os sentidos. A organização, o modo de executar as tarefas, a solenidade dos ritos a linguagem rebuscada e até o traje dos julgadores nos tribunais praticamente permanecem os mesmos há mais de um século. Mas, o que é de maior gravidade, a mentalidade do Judiciário permaneceu a mesma, tendo começado a ocorrer, recentemente, um movimento de mudança, nascido dentro da própria magistratura. Um aspecto importante da velha mentalidade é a convicção de que o judiciário não deve reconhecer que tem deficiências nem pode ser submetido a críticas, pois tamanha é a magnitude de sua missão que seus integrantes pairam acima do comum dos mortais. Essa convicção é frequentemente reafirmada em discursos proferidos nas solenidades realizadas pelo Poder Judiciário, quando é comum ouvir-se a expressão “missão divina dos Juízes”
PROBLEMAS DO JUDICIÁRIO
O autor refletiu longamente sobre as causas sempre apontadas como fundamentos da morosidade do judiciário, como excesso de processos, leis processuais inadequadas e complexas, desaparelhamento material, formação defeituosa dos bacharéis, problemas com o acesso à magistratura, nepotismo desenfreado, corrupção, politicagem, proliferação de leis, escassez de pessoal, multiplicidade recursos processuais etc. Tudo isso existe, existiu e sempre existirá. O judiciário não pode reclamar de que os cidadãos estão procurando o poder judiciário. É ilógica a reclamação. A busca denota a necessidade desse Poder. A busca é a razão de existir do Judiciário. As leis processuais não têm como não ser complexas. Os direitos e garantias do cidadão, expressos nas modernas cartas constitucionais, obrigam o legislador ordinário a fazer leis processuais complexas. Todos falam em tal complexidade e apresentam, como solução, simplificá-las. A cada simplificação, mais e mais problemas surgem. Assim, se a sociedade aceitar isso como argumento estará dando à magistratura o álibi para a ineficiência. Aliás, isso já está acontecendo. Desaparelhamento material é desculpa esfarrapada. Onde ainda não se fez é porque não se quis, por outras opções terem sido feitas. Aparelhamento ideal não vai existir em momento algum, mesmo porque o ideal é um objetivo a ser perseguido.
DO INGRESSO NA MAGISTRATURA
A formação dos bacharéis não é o problema do Poder Judiciário, mas das faculdades de direito. O juiz é recrutado no mercado. Quando ele ingressa na magistratura, é problema da magistratura. Não dá para ficar a vida toda afirmando que juízes de 15, 20 anos na magistratura são ruins porque foram recrutados ruins. São ruins porque a magistratura preferiu o álibi. A magistratura não pode preparar o bacharel, mas pode preparar o juiz. O acesso à magistratura é problema em toda parte do mundo. Nenhum sistema dentre os conhecidos é imune a defeitos. Aliás, nada referente ao homem o é. Sendo criado pelo homem, a criatura segue a natureza do seu criador. São conhecidos, segundo DALLARI, vários critérios de seleção de juízes. A adoção de cada um está sempre vinculado ao papel predominante da magistratura em cada lugar e em cada época. Cita ainda esse autor que CÉZAR ARBACHE apresenta uma relação de trinta e dois modos de seleção de juízes. Já MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, aponta os quatro modos mais usuais:
1. o da eleição, inconveniente por fazer do futuro magistrado um político preocupado em ganhar simpatias e votos;
2. o da nomeação, por outro órgão, que sacrifica a sua independência;
3. o da cooptação, implicando na escolha dos novos pelos mais antigos, com o perigo de nepotismo;
4. o do concurso, de provas que, embora mais seguro, apresenta o inconveniente de salientar o aspecto intelectual do candidato em detrimento dos aspectos éticos e morais.
Nenhum critério, pois, é satisfatório. Assim, de nada adianta pretender justificar a ineficácia com argumento no processo de seleção. A preocupação do Judiciário com o bacharel em Direito, o leva a transmitir a responsabilidade para as Faculdades de Direito. Ora, as faculdades não formam juízes. Formam um gênero. Juiz é problema da magistratura, que os seleciona entre bacharéis. Em vários países os selecionados para a magistratura são submetidos a um curso de duração variada, normalmente entre dois e três anos (Portugal, França, Espanha, Japão). Enquanto isso entre nós, embora o problema seja sentido, — e até algumas soluções tenham sido tentadas — ainda estamos a buscar um bode expiatório. O problema das faculdades de direito segue a sorte do Brasil em geral. Devem melhorar, porém jamais produzirão bons juízes.
O argumento ao nepotismo é também uma falácia. Ele só existe porque se quer que exista. É óbice fácil de transpor, como já o fez, aliás, o Supremo Tribunal Federal, há mais de três décadas. O filhotismo e familismo é algo que depõe contra as gerações, pois a mais nova é sempre a pior, uma vez que não se pôde fazer por si sem a ajuda e a vergonha da lhe antecedeu. Temos no Brasil ministros de Estado, governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, juízes etc., elevados nos cargos, apequenados no talento. Aqui e ali, desponta uma exceção. Como as exceções pontificariam de qualquer modo, porque o talento se impõe, o nepotismo serve apenas à incompetência, não havendo, pois, justificativa para que a nação o aceite.
Muitos dos problemas acima citados estão sendo combatidos em frentes diversas, têm melhorado, mas estão longe de chegarem a um patamar razoável.
Continua..