- 19 de novembro de 2024
FAZENDO O POSSÍVEL
JOBIS PODOSAN
O HOMEM MORREU DE FOME
Quando uma coisa tem de ser feita, alguém deve fazê-la. De nada adianta identificar quem deveria fazer essa coisa se a coisa continuou sem ser feita. A crônica abaixo, de Fernando Sabino, traz a essência do pensamento que desejo expressar:
Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome. Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem deu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.
Morreu de fome.
OLHAR PARA O LADO NÃO RESOLVE
Por que esse homem morreu de fome? Porque a fome é um fato, uma necessidade, que não pode ser resolvida com discussões sobre quem deve socorrer o homem com fome. Cada pessoa envolvida no socorro ao homem apontou para o outro lado procurando alguém que o socorresse.
Alguém deixou de fazer o que era possível a todos. Todos deixaram de lado a conduta possível para si mesmo para buscar outra pessoa que fizesse e o que era possível a cada um.
Às vezes temos que nos perguntar diante de um problema que nos aflige ou aflige aos outros, se estamos fazendo tudo que nos é possível fazer. Não basta saber que existem outras pessoas que deveriam fazer e não estão fazendo. Cada um atua no seu nível de consciência e possibilidades. Quando as outras pessoas que lhe precedem em obrigação não estão cumprindo a sua parte, é preciso suprir essa omissão, de maneira que a pessoa seja atendida em suas necessidades. Também não se pense que quem está ajudando está fazendo isto somente em favor do ajudado. Não. Quem ajuda faz a poupança que no futuro pode vir a precisar. Além de alimentar a rede de compaixão que nos torna melhores.
Em minha trajetória de vida precisei e obtive ajuda de muita gente, alguns até não lembram o que fizeram por mim e ficam surpresos quando lhes digo que sem eles eu não chegaria aonde cheguei. Não pude retribuir a nenhum deles o bem que deles recebi, mas aprendi que se não se pode retribuir a que nos fez o bem, é sempre possível dar a outrem o bem que de outros recebemos. Forma-se uma corrente de ajuda na qual cada elo contribui para o elo seguinte, de modo que todos cresçam e se humanizem.
OBRIGAÇÃO JURIDICA
Tome-se, por exemplo, o caso dos alimentos. A expressão alimentos não significa tão somente comida, mas abrange todos os aspectos a vida, tais como educação, saúde, lazer, cultura etc.
Quem está obrigado a prestar alimentos?
Os encargos alimentares seguem os preceitos gerais: na falta dos parentes mais próximos são chamados os mais remotos, começando pelos ascendentes, seguidos dos descendentes. Portanto, na falta de pais, avós e irmãos, a obrigação passa aos tios, tios-avós, depois aos sobrinhos, sobrinhos-neto e, finalmente, aos primos.
As pessoas acima citadas têm o dever jurídico de prestar alimentos, os mais próximos excluindo os mais remotos, desde que os mais próximos possam prestá-los. Deles podem ser exigidos alimentos em juízo. Mas há outras pessoas, das quais não se pode exigir que prestem alimentos, mas que, mesmo assim, os prestam. São os chamados alimentos voluntários, que as pessoas prestam porque querem prestar, para não deixar que outras pessoas morram de fome ou de necessidades. Todos os dias pessoas fazem o possível, às vezes mais do que isto, para atender as necessidades de pessoas que não conhecem. Prestam alimentos às vitimas de Brumadinho, de Mariana, de enchentes, Criança Esperança, catástrofes diversas, doações a instituições, tudo isto é louvável, porém não olham para os lados para ver as pessoas próximas, parentes ou não, que passam necessidades.
A COLABORAÇÃO ESPONTÂNEA
O princípio da colaboração é simples, chama-se compaixão, e consiste em nos colocarmos no lugar do outro e fazer pelo outro aquilo que desejaríamos fosse feito a nós mesmos. Quem mais recebe tem o dever moral de servir aos menos aquinhoados, até porque ninguém recebe exclusivamente do seu trabalho, embora muitos digam isto por aí. Na verdade enquanto trabalhamos para ganhar nosso sustento, milhares, milhões de pessoas trabalham para nós, de perto e de longe. Cada vez que alguém é ajudado na escalada da vida, mais uma pessoa que pode ajudar está sendo produzida. Tenha-se em vista que ajudar é fazer a menor parte, a maior parte incumbe ao ajudado, se se trata de pessoa capaz. Produzir o próprio sustento é dever de cada um, mas é pouco. Temos de ajudar àqueles com os quais temos obrigações e às outras pessoas que necessitem de ajuda, tudo, claro, dentro das possibilidades de cada um.
A OBRIGAÇÃO MORAL
É preciso ainda acrescentar que a obrigação não é somente jurídica. Existe a obrigação moral, que é tão importante quanto a jurídica, embora não possa ser requerida ao juiz. Na obrigação moral cada um é juiz das suas ações.
O fundamental, mesmo, é responder à indagação constante no título desta matéria: estou fazendo tudo que me é possível ou estou olhando para o lado esperando que outros façam aquilo que tenho a obrigação de fazer?
Quando todos nós estivermos fazendo o que nos é possível, pessoas não morrerão de fome em plena rua e nem passarão necessidades.
Chama-se a isto SOLIDARIEDADE.