- 19 de novembro de 2024
A PEC BAIANA SOBRE O TETO
A IDEIA DE SISTEMA JURÍDICO
Trazida ao meu exame, em primeira análise, a aplicabilidade de uma nova Emenda Constitucional alterando o teto dos servidores do Poder Executivo da Bahia, respondi o seguinte (no momento em que escrevo a PEC ainda não foi aprovada): esta Emenda contém algumas impropriedades jurídicas, que fazem supor não terem sido os juristas do Estado consultados sobre o tema ou, se consultados, agiram fora do direito, deliberadamente, com fim diverso ao anunciado na norma. É mais provável que o punho que elaborou a PEC seja de economistas, administradores ou contadores, que levaram em contra critérios utilitários de contabilidade. Trata-se de construção sibilina para tentar burlar o direito usando como arma a lei, que é apenas uma das suas fontes. Nem tudo que uma lei diz encontra amparo no bom direito. O legislador não dispõe do direito. O direito é uma ciência com princípios próprios, particulares de cada sistema, ou universais, regulados por normas de interpretação, feitas por especialistas. A lei nova pode ser válida ou inválida. Passando pelo processo normal e formal de elaboração, a lei, uma vez aprovada, goza de presunção de validade, mas pode ser declarada inválida se ferir o sistema jurídico no qual será inserida, principalmente o sistema constitucional. As leis estão sujeitas à forma piramidal de validade: cada diploma normativo encontra sua fonte de validade na norma que lhe é imediatamente superior, até chegar na Constituição, que está no topo da pirâmide e rege todo o sistema. O direito criado por uma norma constitucional não pode ser desfeito por norma posterior, aplicando-se esta às situações jurídicas que se enquadrem nas suas hipóteses normativas para o futuro, não alcançando situações jurídicas anteriores. No caso em exame, o teto vigorante ontem é o mesmo de hoje e de amanhã para todos os integrantes do Poder Executivo, tratando-se de direito e não de expectativa. Quem está neste momento no serviço público da Bahia tem direito como teto, ao subsídio de desembargador. Por outro lado, a coisa julgada é intocável por leis posteriores, embora, neste caso seja uma demasia falar em respeito à coisa julgado, o legislador não tem poder algum a este respeito. O Poder Judiciário falou e o que ele disse, uma vez transitada em julgada a decisão, é imutável em todos os aspectos nela examinados e decididos. Se disse que o teto é o subsídio de desembargador, tollitur quaestio (questão resolvida) e assim o será para sempre dentro do processo julgado.
A lei nova traz no seu texto mensagem do legislador e, uma vez jogada dentro do sistema jurídico, converte-se em mensagem da lei. Às vezes as duas se aglutinam outras vezes se repelem, podendo ainda ter partes infringentes das normas maiores ou certas interpretações dela que não encontram agasalho dentro do melhor direito.
O FIM DA LEI
Elaborar uma lei para resolver problemas de caixa, tem, não raro, como consequência, que a nova lei esbarra no direito e não entra no sistema constitucional.
A nova Emenda reconhece que havia um teto já fixado na Constituição para os servidores ativos e inativos do Poder Executivo. Não fora assim, a emenda seria desnecessária, porque a Constituição Federal já fixa o teto dos servidores do executivo como sendo o subsídio de Governador do Estado.
Para entender sobre o assunto é preciso examinar as Emendas 41, referida na justificativa do Governador, e 47 à Constituição Federal, que ele não mencionou, mas que é a chave do enigma. O Poder Judiciário, em suas diversas instâncias, vem entendendo que a Emenda 47 emprestou validade ao § 5º, do art.34, na redação atual, da Constituição Estadual, tornando o subsídio de desembargador como o teto dos servidores do Poder Executivo.
Realidade: o teto dos atuais servidores do Estado da Bahia, ativos e inativos, até a edição desta nova Emenda, é o subsídio de desembargador, tendo como base a Constituição Federal e a Constituição Estadual.
Esta PEC quer mudar o passado e isto o direito não lhe permite.
A VALIDADE DA LEI NOVA
Concedamos, porém, que o Estado pode de mudar o teto dos servidores do Executivo.
Considerando que ela é constitucional, qual é o seu alcance jurídico? Alcança a coisa julgada? Alcança o direito adquirido? Alcança o ato jurídico perfeito? Alcança as expectativas de direito? Ou se aplica somente a quem entrar no serviço público a partir de agora?
Desenganadamente, a emenda somente se aplica a quem entrar no Poder Executivo a partir de agora. A segurança jurídica impede que os servidores sejam surpreendidos com a mudança de um direito que lhe constitucionalmente assegurado. Há, neste caso, muitos argumentos jurídicos que impedem seja esta Emenda aplicada aos servidores inativos ou em atividade. Destaquemos alguns: a) a Emenda rescinde a coisa julgada, pois congela os vencimentos e proventos dos servidores impedindo que o teto seja o de desembargador, como já julgado em dezenas de processo; b) ataca o ato direito adquirido, pois quem já está na situação de fato, sob a lei anterior, não pode ser impedido seu gozo por uma nova lei; c) mesmo quem ainda não ajuizou ação judicial, mas se enquadra a hipótese do regime jurídico anterior não poder ser prejudicado pela nova lei. Há ainda muitos fundamentos jurídicos a infirmar a aplicação da nova emenda aos servidores do Poder Executivo.
A EXPLOSÃO DA BOMBA
As ações judiciais explodirão de novo, mas o governador terá empurrado a explosão da bomba para o seu sucessor. A emenda apenas aumenta o pavio da bomba deste infeliz Estado, como vem acontecendo pelo Brasil afora, dado o sistema de pagamento por precatórios, que exime o governante que gera a dívida de pagá-la. Ninguém perde um direito que já tinha ao tempo da lei velha por ter surgido uma lei nova. A lei não tem aplicação retroativa, limita-se a projetar efeitos para o futuro. Legisladores incautos imaginam que cada lei inaugura uma ordem jurídica nova. Isto só é assim com as constituições originárias, mas, ainda assim, estas têm disposições transitórias que realizam a ponte do regime anterior para o novo regime.
A ÚLTIMA TRINCHEIRA
Promulgada a Emenda é hora de buscar a Justiça para corrigir eventuais prejuízos e eles serão muitos. Prejuízos que, com certeza, vão ser corrigidos pelo Poder Judiciário, esse aí, com maiúsculas. As instâncias judiciais inclinadas, tal qual Torres de Pisa, poderão escamotar o direito, mas a hierarquia judiciária corrigirá eventuais desvios interpretativos. É bom para a sociedade que o bom direito sempre vença e contenha solavancos de imediatidade malfaseja.
Um exemplo que casa como uma luva: o fim da paridade entre servidores ativos e inativos.
Em 2003 foi promulgada a EC nº 43 à Constituição Federal, com o objetivo de extinguir a paridade entre servidores ativos e inativos. A resposta do Supremo? A emenda vale, a paridade acabou, mas somente se aplica aos novos servidores públicos, quem entrou antes da Emenda continua com o mesmo direito.
Lá e aqui a solução é a mesma. Que o Governador trate de gerir o Estado dentro do direito posto e não pretendendo ser navegador de embarcação em tempestade.