00:00:00

Oraculo

A ESTIRPE DE CAIM


A ESTIRPE DE CAIM
 

JOBIS PODOSAN

 

            Os sonhos realizados perdem-se nas brumas da realidade. Os sonhos não realizados transformam-se em ilusões. Ilusões podem gerar novos sonhos e/ou desilusões. De sonhos, ilusões e desilusões forma-se esta experiência maravilhosa que chamamos vida. Quando a vida era dotada de menos complexidade, as pessoas tinham os mesmos problemas de hoje, em menor intensidade. Hoje, estamos na sociedade global complexa. Tudo está interligado, tudo repercute. O bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar uma tempestade na Tailândia. É o Efeito Borboleta que hoje submete toda a terra à teoria do caos.

Até o período medieval, o conhecimento era privilégio de uns poucos, que o colocavam sob sigilo e não o partilhavam. Entendiam até que o conhecimento era maléfico para as pessoas simples, que deviam saber apenas as coisas necessárias para sobreviver. Tinha até nome: santa ignorância. Não saber era considerado um mal menor diante do mau uso do saber incompleto e assistemático. Para que saber coisas desnecessárias, que nada acrescentavam à vida? Muitos países ainda guardam sob o sigilo das religiões, dos professores e mais uns poucos privilegiados, o acesso ao conhecimento.

Mas, a partir da imprensa e da revolução tecnológica e da difusão dos modernos meios de comunicação, o conhecimento, de repente, foi colocado ao alcance de todos. Ninguém precisa de quase nenhum esforço pra saber o que quiser, basta um celular na mão que todas as bibliotecas do mundo cedem espaço para qualquer pessoa. Quando eu era jovem, a casa que tivesse a Enciclopédia Barsa na estante da sala impunha respeito e medo. Até consultá-la era difícil, tendo o consulente que utilizar o livro índice para encontrar o que procurava. Existiam até vendedores da tal Enciclopédia que viviam desse ofício. Professores na sala de aula temiam os alunos que tinham a Barsa em casa, pois estes alunos lhes disputavam o conhecimento. O aluno que escrevesse um trabalho pesquisado na Enciclopédia Barsa, mesmo que apenas copiasse o livro e não fizesse qualquer esforço pessoal para a produção do trabalho, era considerado excelente aluno. A qualidade da fonte qualificava o aluno e o professor.

Onde andará a Enciclopédia Barsa? A Enciclopédia Barsa teve sua última edição em 2010, quando vendeu apenas 8.000 cópias – número 15 vezes menor que os 120 mil vendidos em 1990. A Barsa foi a primeira enciclopédia brasileira desenvolvida por um corpo editorial brasileiro, com base na Enciclopédia Britânica, outra peça de museu.

Como toda obra humana, a Barsa nasceu, cresceu e morreu. Quem ainda a tem vai se desfazer dela, ou algum herdeiro o fará, por se tratar de papel inútil a ocupar espaço nas casas cada vez menores.

O conhecimento do mundo, de todas as épocas está em nossas mãos, bastando clicar e procurar. Os celulares, notebooks e smartphones estão aí com todos os quês do mundo diante dos nossos olhos. O quê saber perdeu a importância. Essas máquinas são hoje extensões das nossas cabeças, fazem parte dela, tanto que não podermos sair sem elas, afinal quem pode sair sem levar a cabeça? Sequer os números dos telefones dos nossos familiares sabemos na cabeça humana, quando muito o da nossa casa e olhe lá.

Toda essa maravilha, no entanto, traz consigo, como tudo o que fazemos, a nossa imperfeição, o caráter maniqueísta do qual nunca conseguimos nos apartar. Para essa doutrina filosófica o mundo é dividido entre o bem ou o reino da luz e o mal ou o reino das sombras,  a revelar o eterno combate entre o Deus e o Diabo.

Ainda é cedo para afirmar, mas já é visível que o reino da luz começou vencendo esse jogo, mas o reino das sombras empatou e começou a ganhar, não se sabendo até agora, quem vai vencer a peleja.

O saber foi colocado todo num grande supermercado de conhecimentos, ao qual todos temos acesso. Podemos comprar, vender e distribuir gratuitamente as mercadorias próprias ou alheias, criando fortunas em dinheiro, liquidando reputações, matando as virtudes e passando um tsunami na vida de todos, tendo o mal amplo espectro de vantagens para ganhar o jogo. Ninguém é mais nada, o conhecimento apartado da responsabilidade vai nos liquidar a todos. Ninguém é mais ninguém. De nada adianta uma vida repleta de princípios e virtudes se alguém pode lançar uma notícia falsa (fake news) sobre você e lhe destruir completamente, sem que ninguém possa fazer nada.

A notícia, seja verdadeira ou falsa, produz o mesmo efeito: maktub.

Na verdade, a informação ao alcance de todos não produziu ainda o bem, pois são informações assistemáticas, que faz com que todos saibam tudo e não saiba de nada especificamente. Estamos diante do saber o quê, sem saber como usar esse saber, por incompleto. Ainda estamos sem os antídotos que nos levarão ao limite de um traço ético que possibilite a convivência harmoniosa da sociedade. Talvez quando todos formos vítimas das Fake News possamos pensar melhor em como usar o saber que está posto a nossa disposição.

        Como as coisas estão hoje postas, as vantagens estão com a Estirpe de Caim.

Últimas Postagens