- 19 de novembro de 2024
MESTÁSTASE E MORTE DO STF
JOBIS PODOSAN
Tomemos como exemplo uma hipotética cidade, na qual não houvesse qualquer lei, e um observador se colocasse em um ponto alto e estratégico, do qual pudesse ver toda a rotina da cidade. Esse observador, qual um moderno Licurgo, perceberia que a cidade se comporta segundo certa rotina. O comércio funcionando a partir de certa hora e até tal hora, pais levando filhos à escola, pessoas trabalhando em afazeres diversos, quem era filho, marido ou mulher de quem, as brigas entre casais quando extrapolavam a casa, os conflitos entre jovens e adultos por isto ou por aquilo, o modo de composição destes conflitos, quais as pessoas que eram ouvidas e decidiam as questões no interesse de todos, quem podia dizer e decidir segundo os costumes e ser obedecido, quais os castigos eram aceitos pela cidade aos infratores, qual a forma de constituição das famílias etc.
Esse quadro singelamente esboçado nos remete a alguma época no passado quando, não havendo leis previamente conhecidas e feitas por alguém com autoridade para impô-las, o povo formava os costumes a reger seu cotidiano, como forma de assegurar a convivência do grupo sem que uns dilacerassem os outros por uma questão de somenos. Os costumes ditavam a paz.
Assim, a primeira ideia de obrigatoriedade de alguma norma nos remete à ideia de costumes formados ao longo do tempo e por todos aceitos. Os países de origem inglesa ainda dão relevante papel aos costumes, mas a lei civil vai entrando até nesse sistema em virtude da globalização, que não mais permite sistemas isolados e estes se interpenetram velozmente.
O Brasil está entre os países que adotaram o sistema de viver sob a lei formal, elaborada por um órgão competente e destinada à obediência de todos, independentemente de consentimento deste ou daquele grupo. Logo, nosso direito é legislado e não costumeiro. Sem que percebamos ou tenhamos consciência, tudo o que fazemos está permitido ou não é proibido por alguma lei. Nosso direito é de origem romano-germânica, no qual até quando você discorda, o faz porque lei lhe permite discordar. Quando a lei não lhe permite discordar, sua discordância é irrelevante, ao menos até que você ganhe poderes suficientes para mudar a lei.
Com a teoria da separação de poderes, esboçada por Aristóteles (384 - 322 a.C.), sistematizada por Montesquieu (1689-1755) e adotada pelas modernas constituições democráticas, temos um poder que faz as leis e dois outros que as aplicam. O Poder Legislativo estabelece as leis que ordenarão a vida social, o Poder Executivo as aplicam para o bem geral de todos e o Poder Judiciário soluciona os conflitos com base nas leis feitas pelo Poder Legislativo, dando a cada um o seu direito. Por esta equação simples, somente o Poder Legislativo faria as leis, limitando-se os demais a tão somente cumpri-las.
Cada Estado, porém, quando adota suas Constituições, a par de reconhecer a separação de poderes, estabelece regras de exceção a estas atividades típicas de cada órgão. Cada um dos poderes passa a exercer atividades do outros quebrando a rigidez do sistema original. Os poderes são declarando independentes, porém, harmônicos e esse mecanismo - chamado de freios e contrapesos - permite que um poder exerça algo de controle sobre os outros, evitando o enfrentamento que resultaria danoso à sociedade.
No sistema jurídico brasileiro, a lei depende, para sua validade, da vontade dos três poderes. O Legislativo delibera, aprovando ou não o projeto de direito novo; o Executivo pode aceitar o projeto e sancioná-lo ou pode obstá-lo total ou parcialmente através do veto, podendo este ser derrubado por maioria qualificada do Poder Legislativo. Porém, publicada a nova lei, entra em cena o Poder Judiciário, que pode invalidá-la se entender que ela não confere com a Constituição, a pedido de qualquer pessoa que seja parte num processo ou de algum legitimado para pedir o controle concentrado de constitucionalidade.
Mas a constituição brasileira vigente inovou, criando duas novas figuras, que ninguém sabia exatamente o que era e nem para que serviam e que, com o tempo, ganhou contornos inesperados e hoje está infernizando a vida dos poderes e da pessoas, porque atribuiu atividade legislativa quase total ao Poder Judiciário.
O Ministro Roberto Barroso, do STF, disse que a Constituição Brasileira “só não traz a pessoa amada em três dias, mas o resto está tudo lá, procurando acha”.
Esses institutos, que subverteram a ordem jurídica e quebrou a distribuição de poderes e que precisam ser urgentemente revogados ou limitados é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental-ADPF e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão-ADIO. Isto quer dizer que, em face da extensão da Constituição e à mingua de não se poder dizer qual é o preceito da Constituição que não é fundamental, que o poder judiciário pode se tornar legislador positivo, destruindo o fundamento de existência do Poder Legislativo, que é a representatividade. O órgão legislativo passa a ser o STF que é composto de 11 (onze) juízes, todos com a formação idêntica, despidos de representação popular e minguada composição e pluralidade para representar toda a sociedade.
Com a ADPF, o STF pode invalidar qualquer lei do Legislativo e substituir o legislado pelo julgado. O julgamento do poder judiciário aplica diretamente a Constituição ou o que eles acham que é, com base em princípios de conteúdo aberto. Foi assim que se permitiu a união entre pessoas do mesmo sexo, sem lei formal e contra o disposto na própria Constituição.
Com a ADIO, pode o judiciário, ante a inércia do legislativo, regular qualquer matéria como um legislador subsidiário. Só não pode prometer trazer a pessoa amada, porque isto não está na constituição, segundo o Ministro Barroso, mas os outros dez podem muito bem achar que está.
O Poder judiciário não toma a iniciativa de fazer nenhuma destas coisas, porque ele não pode agir sem que ninguém peça uma providência. Mas há muita gente que pode pedir e quem mais está pedindo que o poder Judiciário substitua o poder Legislativo são os próprios integrantes do Poder Legislativo (!) e o Ministério Público.
Uma vez solicitado, o Poder Judiciário tem de se manifestar, mesmo que não haja lei, pois a lei estabelece que quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Podendo anular atos do Poder Executivo por critérios de conveniência e oportunidade e de legislar positivamente substituindo os textos da lei por decisão sua, o Poder Judiciário agiganta-se e decreta sua própria extinção como Poder.
O STF está com câncer em metastásico, estribado mais na vaidade de alguns dos seus ministros que na Constituição e no melhor Direito. Todavia, os ombros de onze pessoas não aguentam o peso de uma população de mais de duzentos milhões em suas costas. Falta-lhes a fragmentação necessária para produzir boas leis numa sociedade plural.
Alguns Ministros estão felizes com isto, mas em breve serão envolvidos na rede de abuso de poder que tudo destrói, pois o poder absoluto corrompe a qualquer um que o exerça por longo tempo.
Quando a morte moral precede a morte do corpo, este passa a vagar no limbo da insignificância.
Há indícios alarmantes de cooptação de Ministros na nossa Suprema Corte.