OS ATOS INSTITUCIONAIS
JOBIS PODOSAN
Com a eleição de Jânio Quadros para a Presidência da República, em 1961, o Brasil embarcou em uma nova canoa furada de salvacionismo. Jânio não prometia governar, mas “salvar” o país. Dando algumas vassouradas salvadoras, o “homem da vassoura” varreria a corrupção do país e o transformaria num espaço de felicidade, que só não foi alcançada antes, porque os antecessores do irrequieto goiano eram incompetentes. Por aí se vê que surgiu outro modelo para o líder, ainda jovem naquele então, que Fundaria o Brasil em 01 de janeiro de 2003, data da sua posse na Presidência da República, criando a república do “nunca antes”, que tornou todos os ex-presidentes da república irrelevantes, ervas daninhas que foram extirpadas cirurgicamente pelo Fundador, do que resultou o Brasil feliz dos tempos atuais.
Os brasileiros amam a singularidade, tudo no Brasil é maior, os nossos hinos cantam a beleza e a superioridade do Brasil, terra que Deus criou para ouvir o Bolero, de Ravel, nas Suas horas de descanso, e para que o Fundador repousasse depois da faina da Fundação, sendo ambos, Deus e o Fundador, símbolos de brasileiros especiais, o Primeiro criando o mundo, com seus problemas e o segundo criando um lugar no mundo para a moradia definitiva da felicidade, sem problema algum, salvo aqueles criados pelos “outros”, mas superáveis pela doutrina do Partido do Criador, nicho e ninho criado pelo próprio Fundador para lhe servir de amparo e inspiração, com ideais tão elevados que cegavam os brasileiros da realidade, cada um vendo oásis no deserto e cantando loas à própria desgraça, que aprenderam a atribuir aos antecessores do Fundador, uma vez que este veio dotado da infalibilidade que o tornou uma figura sagrada aos olhos da maioria do seu povo, aí incluídos os inocentes, os ladravazes e os aproveitadores de ocasião.
Dentro dessa perspectiva de singularidades, os brasileiros costumam dizer e acreditar que há certas coisas que só existem no Brasil, tais como: a jabuticaba, chegando Mário Henrique Simonsen a dizer: “se só existe no Brasil e não é jabuticaba, é besteira”. Também se diz que Tribunal Superior Eleitoral-TSE, só existe aqui. Isso porque, além de realizar tarefas tradicionais de uma corte, o órgão também desempenha várias funções executivas. “O TSE cuida tanto do cadastro de eleitores, da inscrição eleitoral, dos ausentes na votação, dos mesários, das urnas eletrônicas, do dia da votação, da propaganda eleitoral, dos candidatos ficha-limpa e das ações pós-eleição”. Porém, há tribunais voltados para as eleições em outros países. Na Costa Rica (!), além das tarefas de uma corte, a instituição também exerce funções administrativas e realiza as eleições, assim como no Brasil. O órgão costarriquenho tem até a mesma sigla: TSE. No caso, Tribunal Supremo de Eleições. Também a mandioca é, por muitos, tida como só existente no Brasil. Tanto que, em 2015, a então presidente Dilma Rousseff, a esclarecida e inolvidável sucessora do Fundador, sobre ela, a mandioca, verberou em discurso famoso: “Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação e aqui nós temos uma, como também os índios e os indígenas americanos têm a deles. Temos a mandioca e aqui nós estamos e, certamente, nós teremos uma série de outros produtos que foram essenciais para o desenvolvimento de toda a civilização humana ao longo dos séculos. Então, aqui, hoje, eu tô saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil”. Besteira, segundo Simonsen, pois na América Latina inteira tem mandioca, só muda de nome, sendo yuca o mais comum. O Samba-reggae, criado por Neguinho do Samba (mestre de bateria do Olodum), é uma adaptação da marcha rancho. Foi fundamental para a consolidação da axé music como o maior gênero mercadológico do pop nacional dos anos 1990. Também a depilação com cera, a tomada com três pinos, o vinho tinto suave de mesa, o carro total flex, a paçoca, a cachaça, o pastel de feira e a urna eletrônica são também consideradas singularidades do Brasil. Outra excentricidade criada no Brasil, e existente somente aqui, é uma tal de TV Justiça que transmite ao povo os julgamentos particulares e gerais, expondo a fraqueza dos juízes e tornando-os suspeitos aos olhos do povo e fazendo com que os magistrados se tornem atores, mais ou menos pornôs, expondo-lhes as vísceras e as vaidades humanas. Na verdade, a maioria dessas coisas realmente não existe somente aqui, a questão é que foram criadas em nosso país e, por ventura, podem ser encontradas em outros lugares do mundo. O que existe em toda parte e não existe no Brasil, deve estar errado. Assim como aquilo que não existe em parte alguma e existe aqui, está, também, errado.
Porém, há algo que, só existiu mesmo, aqui. Só a mente brasileira, tendo de um lado generais incultos juridicamente e, do outro, juristas incultos patrioticamente, poderia gerar um monstro que o tempo, fatalmente, os engoliria. Os juristas que criaram escreveram os Atos Institucionais, tentando vestir o Direito com a força, apenas para atenderem a generais que, acreditando estarem agindo bem intencionados, mataram o pluralismo da sociedade por mais de 20 (vinte) anos, provocando três efeitos agora perfeitamente visíveis: a) aniquilação total do que acreditaram ser sua obra; b) aniquilação total das pessoas que participaram de tais eventos; c) a geração oportunidade para todo tipo de aventureiro de discurso fácil e escrúpulo pequeno tivessem acesso ao Poder e desgraçasse a nação. Presidentes e vices eleitos sem preparo para o cargo, substitutos lamentáveis, governadores, prefeitos e parlamentares sofríveis em todos os níveis da federação e até ministros da Suprema Corte acusados publicamente de mudar a jurisprudência a depender da pessoa do réu. E esse dito cujo nada fazer para esclarecer a acusação feita por outro ministro do mesmo tribunal!
Outro efeito terrível foi o surgimento de líderes vazios, gente de muito discurso e escassa formação que servisse de base às palavras saídas da boca, entre eles o Fundador que, falando ao coração e acenando com a satisfação pelo Estado das necessidades imediatas das pessoas, meteu na cabeça do povo que poderia haver pão sem padeiros, colheita sem semeadura, evolução sem aprendizado e progresso como resultado tão somente favores do Estado.
A nação tem de pagar o preço pelas suas escolhas. Jânio renunciou? O substituto eleito tomaria posse e concluiria o mandato. Havia o risco de guinada comunista? Os poderes se harmonizariam entre si, pois o Poder Executivo sozinho não poderia instalar o comunismo no Brasil, mormente se as Forças Armadas estavam contra. Pergunta-se, porém: e se os poderes e as forças armadas quisessem o comunismo ou mudassem a Constituição para instaurá-lo aqui? Instaurar-se-ia o comunismo. Na verdade, a possibilidade era zero de isto acontecer. Os militares foram manipulados por sofismas (melhor hipótese) e cederam sem estudo de situação. Onde os comunistas achariam os militares para ser a força a amparar os ideais comunistas? Na verdade, os comunistas queriam entregar o Brasil aos Russos e os militares, aos americanos. Só isto. Deixar Jango terminar o mandato e fazer as eleições normais em 1965 era a solução mais barata e oportuna.
Dado o golpe de 31 de março de 1964 na Constituição e visando a implantar a ditadura militar, e realizar as mudanças que a Constituição de 1946 não permitia foram editados inicialmente os Atos Institucionais 01 e 02 que modificaram as regras para as futuras eleições e concederam às Forças Armadas a prerrogativa de suspender direitos políticos e cassar mandatos legislativos, além de demitir servidores públicos acusados de improbidade administrativa. Esses atos também deram plenos poderes ao Poder Executivo quanto à execução dos decretos e normas editadas, impedindo ações judiciais a respeito deles. Vigeram até o ano de 1979.
A noite baixou sobre o mundo jurídico e o Judiciário foi eclipsado pela força e, por consequência, os direitos dos cidadãos desceram pelo ralo. A vontade de uns poucos fardados - esquecidos que a nação é civil - se sobrepôs à lei e fez desaparecer a liberdade. Generais se fizeram presidentes sem o consentimento do povo. Generais podem ser presidentes, bastando que se candidatem e sejam eleitos. Em 1946, disputaram as eleições o General Dutra, o brigadeiro Eduardo Gomes e o comunista Yedo Fiúza pelo Partido Comunista do Brasil (PCB). De dois generais e um comunista, o general Dutra saiu vitorioso do pleito, obtendo cerca de 55% dos votos, e mundo não acabou.
Em 13 de dezembro de 1968, com a edição do AI-5, que previa o fechamento do Congresso Nacional, passando as funções legislativas ao presidente da República; suspensão dos direitos políticos e das garantias constitucionais, como a suspensão do habeas corpus (instrumento jurídico de garantia de liberdade individual); intervenção federal em estados e municípios; e a possibilidade do presidente decretar estado de sítio sem autorização do Congresso, o direito passou a vontade do general presidente, que tudo podia. A desgraça se abateu sobre o país e o futuro de cada um deles, que de herói que pensavam ser, o tempo transmudou em vilões que verdadeiramente eram. Deixaram para a posteridade apenas o exemplo do que não fazer. Espera-se que os generais de hoje sejam melhores e mais esclarecidos que os de ontem. Querem ser presidentes, submetam-se à vontade do povo. Militares são apenas a parte do povo que usa farda e é encarregada da segurança da nação, sem supremacia alguma sobre os civis, que na verdade, também o são.
Por este fatídico AI-5, o presidente podia tudo, logo, não era um ato jurídico, mas ato contrário ao Direito, uma vez que é da natureza deste, impor limites aos governantes e não lhe dar o poder absoluto.
A partir daí foi o puro arbítrio. Arbítrio cego e com o seu fim embutido nas arbitrariedades que fatalmente cometem todos aqueles que detêm o poder absoluto. Arbítrio tolo, porque a história o reconheceria como tal e apagaria todos os seus efeitos, menos os negativos. Os próprios personagens que encarnaram o poder absoluto tenderiam, como já acontecendo, a caírem no opróbrio e no esquecimento. Não se sabe como seria o Brasil se o golpe não fosse dado, mas sabemos que o resultado desse golpe não foi bom para a nação, como de resto nenhum golpe o é.
O Fundador do Brasil não existiria não fossem esses fatídicos atos institucionais que fuzilaram a inteligência nacional, empurrado os mais preparados para a esquerda ou para a indiferença, os espertos improdutivos para a política e os oportunistas para a corrupção, fracassando todos. E estamos nós vagando em busca de um destino, e os corruptos presos, processados ou a processar. Esses corruptos são gente que pratica o pior de todos os crimes, porque atinge toda a família, degrada os pais e filhos, afasta os amigos, envergonha a todos e mata a esperança, porque o corrupto tem apenas a ganância de ter aquilo de que não necessita, enfim, o corrupto é o que de pior produz o ser humano contra si mesmo. Ele troca momentos de ostentação por uma vida de tristeza e vergonha.
O povo deve votar e eleger, tanto o sábio quanto o asno, e ambos devem governar, para construir ou retardar o crescimento. Os mecanismos de tirar os governantes são os previstos na Constituição, nunca a força.
Desses erros e acertos a nação evolui, rápida ou lentamente, porque a nação não é somente os que governam, é, principalmente, o conjunto do seu povo que, apesar dos maus governos, segue adiante.