- 29 de outubro de 2024
Alta cozinha e o pirarucu
IGNACIO MEDINA (El País - Brasil)
O pirarucu vem a ser o porco do rio: tudo se aproveita. Desde a carne, branca, firme e com poucas espinhas, até as escamas, entre o avermelhado e o amarelado, que acabam transformadas em enfeites ou lixas de unhas. Também as espinhas e a estrutura óssea da língua, tão dura que em alguns lugares do Brasil é usada para ralar guaraná ou pequenas peças de madeira. Em outros, é triturada e misturada com casca de guaraná e água para preparar supostos remédios.
A alta cozinha costuma ser um dos grandes aliados na extinção de muitas espécies. Isso comprova o esturjão, o outro gigante de água doce. A história do pirarucu oferece um discurso diferente. Marca um caminho que fala da conservação das espécies e, com ele, o da sobrevivência das cozinhas.
A alta cozinha costuma ser um dos grandes aliados na extinção de muitas espécies
O responsável foi Paulo Martins, o pai da cozinha moderna brasileira, e o cenário, o restaurante Lá em Casa, aberto em Belém com sua mãe à frente dos fogões. A partir dos anos 70 se transforma na vitrine que lança ao mundo as novas formas da cozinha brasileira. Até sua morte, em 2010, a cozinha de Paulo Martins foi o centro nevrálgico do qual se difundiram muitos produtos da Amazônia. Desde o pirarucu à chonta –palmito cru, picado em tiras, comido na salada ou incorporado a diversos guisados–, passando por ervas como a priprioca.
O trabalho de Paulo Martins deu impulso a uma nova forma de ver o pirarucu e a cozinha da Amazônia brasileira em particular, representada pelo jovem Thiago Castanho, proprietário do Remando do Bosque, também em Belém. Estreitamente relacionado com a aquicultura da região, Castanho trabalha no desenvolvimento de novas técnicas de salgar a carne do pirarucu.
Todos trabalham hoje no Brasil com pirarucu criado em cativeiro, estimulando um movimento que se concretiza, além disso, em um festival culinário itinerante chamado Pirarucu de Cativeiro. A última edição ocorreu em Manaus.
Pedro Miguel Schiaffino seguiu uma trajetória semelhante à de Paulo Martins, embora vivida com 30 anos de diferença e do outro lado do continente, em Lima, às margens do Pacífico. Profundo estudioso das cozinhas e dos produtos da Amazônia, Schiaffino transformo seu restaurante, o Malabar, na grande referência da alta gastronomia amazônica. Seu papel como introdutor do paiche no mercado peruano foi decisivo, embora sua presença em Lima se limite à carta dos restaurantes. O Peru é hoje o principal produtor de paiche da região – somente uma empresa peruana, a Amazone, exporta anualmente mais de 40.000 quilos para os EUA e a Europa –, embora seja raro encontrá-lo nos mercados.